quinta-feira, 7 de julho de 2011

Noir em tons de cinza

Antes do tudo convém que se diga que Pablo Trapero é hoje um nome considerado do cinema argentino. E é-o quer na sua qualidade de realizador sobretudo ligado a um cinema de responsabilidade e denúncia social – com EL BONAERENSE (2002) fez um duro retrato da corrupção policial em Buenos Aires, ou já mais recentemente, LEONERA (2008), candidato ao prémio máximo em Cannes, um drama realista sobre a vida de uma jovem grávida numa prisão feminina – quer ainda como produtor – produziu LA LIBERTAD de Lisandro Alonso (2002), além de desde cedo ter produzido os seus próprios filmes.

CARANCHO, que hoje estreia em Portugal, a sua sexta longa-metragem, parece uma aposta segura não só pelo tema à medida de Trapero, o número impossível de acidentes de viação em Buenos Aires, como a aposta num par de actores familiares, ele, o famoso Ricardo Darín (El SECRETO DE SUS OJOS, NUEVE REINAS), e ela, Martina Guzman, protagonista de LEONERA e esposa do realizador. O que parece já não calhar tanto a propósito é que o virtuosismo técnico e ambiental de CARANCHO era para ser experimentado numa revisitação, visionária ou saudosa, isso não se sabe, do género noir.

Na noite interminável de Buenos Aires, junto às suas estradas e destroços de acidentes há dois tipos de «fauna»: os que tentam salvar as vítimas (os paramédicos) e os «caranchos», ditos abutres, advogados que, perseguindo as ambulâncias, tentam acordos de representação dos sobreviventes para a obtenção das indemnizações, isto quando não causam eles próprios os acidentes. Sosa (Darín) é um desses abutres que, tentando fugir ao destino fatalista noir, busca uma linha de fuga desta noite de crime e suborno, apoiado na relação insólita de amor que começa com uma das paramédicas Luján (Guzman).

Se o par improvável, a noite densa e iluminada pelas luzes da rua, e o rasteiro e os destroços, planos que abrem o filme, começam a construir o universo negro, há desde o início pequenos indícios que destoam, espécie de bug do sistema, que ora funcionam como mancha na homenagem, ora servem o ecletismo da experiência da Trapero. Desta forma, CARANCHO pode ser uma visão moderna do noir, que se articula e muta a todo o tempo, quer com a exposição realista do seu cinema - denúncia (e há tanta denúncia no olhar de Luján e nas acções de Sosa), quer com a engenhosidade e fúria visual de um thriller, embora irónico, sobre acidentes e porrada.

Contudo, pensamos ser também legítimo ver as coisas invertidas, isto é: existe no mundo destas personagens, uma trama de acontecimentos cujo potencial de denúncia não é da mesma ordem argumentativa do mundo fatal, desesperado, que o noir reclama para si, e que, a espaços, CARANCHO contém. Nesse sentido, por vezes o rocambolesco toma conta do destino da obra e a técnica explicita-se com rédea menos curta, o que, por exemplo, faz com que a cena final, longo plano-sequência, seja ilustrativo dessa relação no filme, dessa incapacidade de decidir entre o fatalismo surdo do noir e o fecho do argumento, a «história bem contada», que convoca a tecnicidade do desfecho de um outro filme, também ele interessante na forma de se posicionar em limbo: CHILDREN OF MEN.

Se a ironia e o humor negro da conclusão não funcionam, seria injusto não creditar o poder da dupla Guzman / Darín, a fazer lembrar outros pares impossíveis, justíssimos na sua capacidade de trazer à tona a possibilidade de um amor verdadeiro num mundo de desespero, dor e morte.



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