quarta-feira, 13 de julho de 2011

A antítese da paixão


Mais de dois anos depois da sua estreia mundial, estreia esta semana em Portugal
o polémico filme do cineasta «experimentador» Steven Soderbergh, THE GIRLFRIEND EXPERIENCE. Filmado em 16 dias e com um orçamento de menos de 2 milhões de dólares, este surge como um olhar de ressaca sobre o efeito devastador do sistema capitalista, não só nos seus profissionais empresários, mas sobretudo na vida de uma call girl de luxo nova-iorquina, Chelsea (Sacha Grey) e do seu namorado Chris (Chris Santos), instrutor num ginásio. Mas isto já é ler a metáfora de abandono que o filme contém e que está escarrapachada. Na verdade Soderbergh dá-nos um mosaico de encontros, não cronológico, de Chelsea com os seus clientes - empresários deprimidos com a situação económica - com críticos de sexo que a tentam ajudar a promover o seu site ou com jornalistas interessados em escrever uma história interessante.

Se esta ideia de colocar o esforço de uma prostituta de luxo e do seu companheiro para subirem de vida, num ambiente de tensão financeira, é ela própria uma ideia da ordem da pornografia da associação, se assim lhe podemos chamar, este não é o único ponto de atracção do filme. O outro é que Sacha Grey, actriz principal de THE GIRLFRIEND EXPERIENCE, é leitora assídua de Thomas Pynchon e compositora de «noise music» além de na vida real ser actriz pornográfica ou «performance art», como ela diz. Daqui resulta este fait diver (no qual Soderberg é mestre, lembremo-nos de BUBBLE e da sua estratégia de lançamento) que deveria catapultar o filme para uma espécie de interesse extra que deixa o cineasta americano no nível que mais o interessa: a sombra autoral de onde compõe a fotografia dos seus filmes a partir de variados pseudónimos, de onde trabalha a montagem ou manipula actores em sets estilizados (ou não tivesse ele uma costela nórdica).

E eis-nos chegados ao seu enigma.

É provavelmente a partir do facto de Steven Soderbergh saber diferenciar muito bem o potencial de uma ideia, da sua execução (sendo que este considera que os seus «falhanços» estão sempre do lado conceptual), que deve ser analisado o ecletismo da sua carreira. Se da história do cinema temos exemplos da uniformidade de um universo autoral construído por sobre uma diversidade de registos (Howard Hawks ou Michael Curtiz, de quem Soderbergh é confesso admirador, como expoentes máximos), em Soderbergh, a diversidade de registos tem, não só dificultado a sua categorização artística (o que nem é mau), mas também fomentado a construção, repetimos construção, de uma «ausência» de estilo autoral. Ou por outra, as distâncias focais nos quartos de hotel, restaurantes e salas, o aproveitamento dos músicos de rua, os décors a esconder os actores são tudo elementos que contribuem para que muito de THE GIRLFRIEND EXPERIENCE seja realizado como uma música easy-listening: sem falhas na «execução» mas com uma sombra fria que nos adormece.

É nessa linearidade que a expressão adolescente e traumatizada de Sasha Grey, que escreve pormenorizadamente os encontros com os clientes, deixa entrever uma dimensão emocional, intimista, a que é difícil aceder. No caso da actriz porno, esse lado é veiculado pelo velamento pornográfico patente no seu olhar e nunca na natural capitalização do seu corpo. Nesse aspecto, o casting do filme permite que THE GIRLFRIEND EXPERIENCE tenha essa dimensão de boneca russa, de algo pequeno a fazer-se grande, de uma loba que é realmente cordeiro ou viceversa. A esse jogo de identidades, Jean Luc Godard, cujos filmes dos anos 60 são aqui homenageados, nunca se permitiria. Trata-se antes das figuras reais de Godard, num jogo «anti-godardiano» de questionamento das suas realidades.

Seja como for, sabe-nos a pouco. Tal como o jornalista diz a Chelsea, também nós ainda estamos à espera de aceder ao seu «inner you». Neste caso ao do cineasta americano.


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