Para fazer jus ao tema do Urso de Ouro do ano passado gostava de vos escancarar um pedaço da minha intimidade. Tenho pena de não estar à altura das circunstâncias, mas a cavalo dado não se olha o dente. Vou revelar-vos que não gosto muito daquilo que na sociedade se pratica como sendo a arte do “ir beber um copo”. Contudo, no outro dia lá fui, um tanto a contragosto, e ouvi esta conversa entre dois amigos de longa data, o JF, ou João Naïf, e o PC, o Paulo Correcto.
A fala que, entre tremoços, botavam, era esta:
JF: Juro-te que já pensei em deixar de ser teu amigo. Nunca me respondes às chamadas.
PC: Desculpa, ando numa fase complicada. Muito trabalho.
JF: Ah é? E o que andas a fazer?
PC: Olha, a fazer pela vida. A transformar manifestos de causas socialmente defensáveis em obras de arte.
JF: Epá, isso só pelo nome deve ser complicado.
PC: Nem por isso. Anota aí. Primeiro, arranjas um tema que aches que a sociedade precise de encarar com outros olhos. Depois, arranjas uma historieta qualquer que possa servir de suporte a esse manifesto. Em terceiro lugar, muito importante, tens de controlar de início o tempo de confecção para estar pronto a tempo de ser servido para um grande prémio da área em que estás a cozinhar. Outra coisa importante, pegas numa batedeira e ligas o manifesto à historieta até fazer claras em castelo.
JF: E como é que fazes isso?
PC: Fácil. Primeiro, tens aquilo que se costuma chamar em algumas artes, de personagens. Ora, esvazias o miolo delas, e depois recheias o seu interior com palavras que sirvam a causa que estás a trabalhar. Por exemplo, pegas no Manel da padaria e fá-lo chegar à câmara e dizer: “não existe o esquisito no domínio da sexualidade”. Toda a gente, com um mínimo de testa, vai concordar com o que é dito e tens a tarefa concluída: transformaste com sucesso uma pessoa numa marioneta.
JF: Não sei se compreendo para que serve tudo isto…
PC: És mesmo muito querido, tu. Então não gostavas de ser conhecido (e premiado) como o grande artista que abriu, com a sua arte, a questão da sexualidade, dos refugiados, da emergência do fascismo, da mortandade dos guaxinins?
JF: Sim, isso sim. E além disso, arte que é arte tem de ter consciência social.
PC: Pois, claro que sim. Desde que não perca a consciência artística.
JF: O que é a consciência artística?
PC: Ora, isso não é fácil de explicar. Mas vou tentar através de um exemplo. Peguemos num filme como Touch Me Not (Não Me Toques, 2018), que venceu em Berlim no ano passado. Primeira longa-metragem da realizadora romena Adina Pintilie. O tema é super nobre, uma investigação pessoal acerca das questões da intimidade, da sexualidade, da identidade. Aquilo que nos define enquanto opções, problemas, desejos sexuais. Um desses temas que nos diz respeito a todos.
JF: Parece-me um grande exemplo dessa tal de consciência artística de que falas.
PC: Pois. Aí é que está o equívoco. Nem por isso. Repara. Qual é a intenção que transparece ao vermos o filme? Uma que é, como dizia, bastante nobre. Mostrar que não existe normal nem anormal na sexualidade, que devemos fugir da etiquetagem, do estigma do diferente, de uma educação sobre o conhecimento do nosso próprio corpo e desejos, etc. Foucault ficaria orgulhoso com tanta nobreza. Mas depois falta ao filme de Adina Pintilie consciência artística para conduzir estas questões.
JF: Mas porquê?
PC: Porque pura e simplesmente ela acha que a melhor forma de abrir a questão é recolher espécimes de uma “suposta e estigmatizada anormalidade” e trazê-los para diante de uma câmara. Para que possam ser vistos e ouvidos. Trazê-los para a visibilidade.
JF: E isso não é ter consciência artística? O Pedro Costa fez isso com os imigrantes cabo verdianos. E dele ninguém ousa falar mal.
PC: Pois, mas a diferença entre os dois gestos é abissal. O Costa criou um imaginário ao qual todas aquelas pessoas se reclamaram, e com toda a razão, direito a pertencerem. Em Touch Me Notesse imaginário não existe. Ou melhor, os seus planos cerrados no espaço do workshop, da arquitectura fechada do hospital, dos fuminhos demoníacos das catacumbas do prazer, do quarto da senhora com problemas de aproximação ao sexo, ou a falta de profundidade de campo constante, mostram bem a estética do clínico, da observação laboratorial. A dada altura, o senhor com amiotrofia muscular espinhal olha para a sua namorada e para a câmara e diz: parece que temos audiência. E sorri. E o filme é isso, uma intimidade devassada, uma câmara que está à espera de confissões, de habilidades, de frases como “não é fácil ser diferente”. Isto na esperança de que “trazer para a visibilidade” seja um acto de justiça artística. Mas não o é.
JF: E porquê?
PC: Olha, porque trazer aquelas pessoas para a visibilidade sem lhes conferir um imaginário, sem diluir a ideia de estigma e de diferença, integrando-as no quotidiano, desprotege-as. Torna-as o centro do prazer voyeurista. Acredito que Pintilie achasse que estivesse a trabalhar nas peugadas de gente como Costa, como Foucault, como Orwell (“four legs good, two legs bad”), mas vemos o filme e lembramo-nos antes de obras como Freaks (A Parada de Monstros, 1932) de Tod Browning, ou como Zoo (1994) de Frederick Wiseman.
JF: Estás a ser mau.
PC: Não. Estou a contar-te o que senti. E a tentar provar-te que falta de consciência artística é ter uma intenção, por muito nobre que seja, e não conseguir utilizar os materiais da sua arte (no caso do cinema, sabemos bem quais são) de forma a servir essa intenção. Touch Me Not é um bom exemplo desta discrepância: aquelas imagens e aqueles sons traem a intenção política da obra. E mais importante que tudo, traem a confiança daqueles que nela se expuseram, se retrataram.
JF: Mas achas que podemos associar este filme ao de Browning?
PC: Não e sim. Não, porque como evidente estamos aqui a falar de um problema muito sério. O controlo do poder sobre as questões do sexo, que ditariam a norma, as patologias, os supostos desvios, etc. E, nesse sentido, a consciência dos padrões e trajectórias do poder são essenciais para as questionar e refazer. Mas, não é isso que diz e faz a câmara de Pintilie. Esta afunila essa separação, convoca a ideia da observação circense, confunde uma câmara com um holofote. Ou seja, não internaliza a diferença, integrando-a numa paisagem mais vasta. Em vez disso, exponencia-a ao ponto da atracção de feira.
JF: Estou a ver… E é nestas coisas que andas metido. Nestas maroscas.
PC: Claro. Isto é uma mina meu caro. É preciso ter olho. Vou lá dentro buscar mais tremoços.
Muito bem explicadinho mesmo, fiquei a perceber essa coisa da consciência artística.
ResponderEliminar~CC~
Não percebeu onde quis chegar?
ResponderEliminar"Esta afunila essa separação, convoca a ideia da observação circense, confunde uma câmara com um holofote. Ou seja, não internaliza a diferença, integrando-a numa paisagem mais vasta. Em vez disso, exponencia-a ao ponto da atracção de feira."
ResponderEliminarUma tendência transversal contemporânea, não é mesmo?
Não sou tão pessimista assim. Mas percebo o que quer dizer. Obrigado pelo comentário.
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