quarta-feira, 17 de abril de 2019

O funeral do gato

Uma das coisas mais bonitas do cinema, algo que me comove seriamente, é que, em certas ocasiões, a bússola com que navegamos a cinefilia avaria-se e perdemo-nos. E é então que, muitas vezes, nos encontramos. Vai-se a linha que separa os realizadores A dos realizadores B, os que são tecnicistas dos narrativos, os festivaleiros dos filmes de comes e bebes, os manipuladores dos de vanguarda, os saudosistas dos oportunistas. Todos estes pontos cardeais, que ajudam a fazer do establishment um establishment e do espectador, do crítico, do realizador, do produtor, agentes identificáveis na navegação, escorregam em direcção ao nada. Nesse momento ficamos ali, sozinhos, cheios de fome e sede, numa ilha a sós com um filme e as suas imagens como única fonte de sustento. Já há muito que se perdeu a tarefa do crítico, mesmo a do espectador. Somos náufragos: e o nosso olho come o lixo, a luxúria, a soberba, a simplicidade dos que caminham sem direcção definida.



Intróito-exagero para vos recomendar que vejam a moderada bizarria deste Rubin and Ed (Rubin & Ed, 1991) sem essa sobrancelha da seriedade, ou mesmo, sem empunhar o florete maneirinho do camp e do cult movie. Trent Harris não creio que tivesse alguma vez tido a ambição de ser um realizador. Era cameramen de um noticiário em Beaver, no estado de Utah, quando, ao fazer testes de câmara no parque de estacionamento da estação de televisão em que trabalhava, encontrou um jovem a tirar fotografias que ficou muito entusiasmado por estar a ser filmado. Harris descobriu que este não só fazia imitações de John Wayne ou de Olivia Newton John como estava ali para tentar carreira na televisão. Embora não tenha tido sucesso, tornou-se o centro da primeira curta-metragem de Harris, The Beaver Kid (1979) que viria a ter duas sequelas, The Beaver Kid 2 (1981) e The Orkly Kid (1985). Foi nestas que, ao fazer o reenactment e a expansão dramática do encontro inicial com o rapaz das imitações, nos deu a conhecer um muito jovem Sean Penn (!), além do actor Crispin Glover.

Esta comédia é um inteligente detour pelos caminhos pré-percorridos de uma ideia de sucesso. E não o é menos pelos caminhos pré-percorridos por uma ideia de sucesso no cinema. Se falo nestes inícios e nestes três filmes (que em 2000 se uniriam em The Beaver Trilogy) é porque foi na realização de The Orkly Kid que Crispin Glover criou a sua personagem Rubin. Cabelo comprido louro esticado, calças à boca de sino, botas de tacão alto, óculos muito grossos e complemente sem amigos. Ah, e com um gato morto no congelador. A transformação de Glover foi tão icónica que criou um motivo para Trent escrever Rubin and Ed, aquela que viria a ser a primeira da sua pouco profícua carreira como realizador. A Rubin, Harris imaginou um improvável companheiro de aventura. Ed, um cinquentão com problemas de anger managment, divorciado e a trabalhar na angariação de clientes para workshops sobre empreendedorismo e sucesso na vida.

A primeira coisa que se ouve em Rubin and Ed, ainda nem há imagem, nem os gestos coreografados do profeta vendilhão é: “Are you willing to open the door to your dreams?” Pausa. Imagem e o patrão do Ed levanta aos braços no púlpito de onde fala e exclama: “SUCCESS!” E, como na missa, as pessoas que estão no workshop respondem: “Success!” E o orador volta à carga: “And why do we want that success?”. Pausa para os fiéis pensarem. E a resposta faz-se ouvir pelo orador, instantes depois, em novo grito: “MONEY!” E todos, claro, gritam “Money!”. “And how do we get that money?”, pergunta. E Ed responde sozinho: “Work!”. O seu patrão ri sacasticamente e diz: “No, no no… not work. REAL ESTATE!”

Este pequeno docinho de menos de dois minutos, que caricatura bem um certo carreirismo da época de Reagan, tem, contudo, uma função bem mais transversal em toda esta comédia em formato road-buddy-movie. Quando Ed, que quer a todo o custo provar à ex-mulher que não é um falhado, que consegue ser daqueles que tem sucesso e dinheiro, encontra Rubin, este é o único que na rua não o manda passear, o único que fica a ouvir as suas patranhas sobre um inquérito de angariação de potenciais vendedores de imóveis ao estilo Remax. A primeira pergunta é marcante. Ed questiona: “Are you 100% satisfied with your earning potential?” E a resposta de Rubin, estilo bússola avariada é: “YUP!” A segunda pergunta alarga a questão: “Are you 100% satisfied with your life and/or outside relationships?” E a resposta repete-se ao estilo bartlebiano: “YUP!”



Este primeiro encontro deixa claro que Trent Harris divertir-se-á a fazer chocar de frente duas posturas que teriam, cada uma à sua maneira, permitido o clima político dos anos 1980 nos Estados Unidos. De um lado, o pobre empreendedor, aspirante a rico, que todos os dias reza à deusa do capital; do outro, o jovem conformado, aparentemente lobotomizado, que não possui qualquer competência ao nível social, nem tem necessidades ou exigências económicas e políticas. E o que se torna mais interessante é que, quando Rubin saca o carro de Ed para poderem ir pelo deserto à procura do melhor sítio para enterrar o seu gato, ele não está tanto a fugir à masterclass à qual tinha prometido comparecer, mas sim a dar-lhe um lição privada de uma landscape mental alternativa ao seu guru do “MONEY!” Também para isso contribui todo o um lado místico, a lembrar as odisseias de Jodorowsky mas sem a auto-consciência da alternativa estética. Ou mais ou menos. Pois durante o caminho surge-nos o graffiti : “Andy Warhol Sucks a Big One”.

Desta forma quase que podemos dizer que no seu exterior Rubin and Ed é uma comédia praticamente nonsense, uma busca interminável a fazer lembrar After Hours (Nova Iorque Fora de Horas, 1985), ainda que sem a sofisticação deste, ou alguns filmes de John Waters. Um filme com piadas sem grande sentido – um homem que passa na rua e ladra às pessoas – e outras de fazer o estômago dar uma volta sobre si mesmo – a dada altura, no deserto, Rubin bebe o suor das palminhas dos seus próprios sapatos ou a água da geleira onde trazia o cadáver congelado do seu gato. Mas, dizia, para além desta capa, esta comédia é também um inteligente detour pelos caminhos pré-percorridos de uma ideia de sucesso. E não o é menos pelos caminhos pré-percorridos de uma ideia de sucesso no cinema.

Talvez valha ainda, para terminar, regressar à figura icónica de Rubin, criada por Crispin Glover. Quando olhamos para a sua caracterização, e sobretudo pela sua recusa em ter um conjunto de atributos de sucesso, pensamos neste trajecto que iria das figuras cómicas de Chaplin ou Keaton até personagens como as de Napoleon Dynamite, Beavis and Butthead ou este Rubin. Pelo caminho parece que, algures, a humanidade ingénua dos primeiros, que fazia destruir pelos seus eixos as grandes roldanas do mundo citadino e modernista, tenha dado lugar a uma seriedade ingénua. Um modus vivendi que não aspira a integrar-se na “suposta normalidade”, ou que parece ter perdido fôlego para o fazer. Uma intensificação do deadpan na qual a comédia gira o seu espectro e se torna apenas desconforto, dignidade da alternativa, resistência passiva. Se isso assim não o é, o que dizer deste pontapé a David Letterman (que muito deu que falar) por Crispin Glover em modo Rubin, no seu programa?

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