terça-feira, 2 de abril de 2019

The Mule - Clint Eastwood



Com quase 9 décadas de existência, Clint Eastwood faz hoje cinema a partir de uma posição de que poucos se podem orgulhar. A idade é um posto, costuma dizer-se, mas quem acharia que o durão de outros tempos viria fazer o elogio de uma flor? Podia começar aqui a grande e simples complexidade de The Mule. Num dos planos finais, Clint derrotado pelo seu próprio sentido de justiça, cuida das flores que sempre foram suas. Estas, que não duram mais do que um par de dias, lado a lado, com uma estrela-rocha com 90 anos. O efémero em sapiente raccord com o perene. O que passa e o que permanece? Ou talvez diferentes declinações do que é transiente, numa dupla face, companheiros de todos os tempos. Isso, aliás, é muito do que nos toca. Uma década depois de Gran Torino tínhamos na memória o seu hard outside-soft inside Walt Kowalski e não estávamos preparados para isto. Para as primeiras cenas em que Clint volta ao ecrã, alguma dificuldade já em falar (como um amigo que envelheceu, sem que nos apercebêssemos, num interregno de anos sem lhe pôr a vista em cima) e sobretudo revelando, expondo a sua própria fragilidade. Todos temos algo de rocha e algo de flor. À medida que a narrativa avança percebemos que não estamos apenas perante o velho seguro dos seus erros, irónico sobre a modernidade, mas de alguém que, por hipótese, como lhe dizem a dada altura, poderá ter gozado "demais" a vida e ter-se colocado numa posição de vulnerabilidade. Alguém que está disposto à redenção, que deixa cair a capa do anti-herói, que queria arranjar dinheiro para comprar a única coisa que o dinheiro não pode comprar: tempo. 

Mas The Mule parece daquelas obras inesgotáveis. Veja-se aquele último plano dos jardins no interior da prisão. Trademark da sua mise-en-scène tardia: um sentimento de serenidade constante, uma gosto doce mesmo na grande amargura. Lembro-me daquele verso de uma canção de Ney Matogrosso que diz: "Sonhar só não tá com nada. É uma festa na prisão". Também este plano é o grande revelador desta hipótese bem arriscada que nos coloca Clint Eastwood. A liberdade não é um affair de paredes e betão, nem a família é só uma questão de sangue. Já perto da morte, a sua ex-mulher, Mary (Dianne Wiest) diz-lhe que o seu trabalho sempre teve a sorte de ter a versão maravilhosa do seu marido, Earl, enquanto a família ficou com o lado mau. Mas não é isso mesmo que acontece durante o filme? Com os conselhos e amizade dados aos supostos gangster com quem começa a trabalhar. Ou, por outras palavras, não é esse o papel do grande ícone do cinema: fazer do mundo, família?

Mas dizia, a tese é arriscada: Earl termina culpado aos olhos da justiça, mas inocente perante a vida. The Mule também é, portanto, uma forma de dizer que há uma forma honrada, bela, consciente de fazer o que é "errado". Mesmo que isso seja um crime. Talvez por isso tenhamos esses momentos de serenidade que fazem do golpe um road movie rural, cantado, com pausas para sandes de porco e ajuda ao próximo para mudar o pneu de um automóvel. Earl faz assim prevalece o "correcto" mesmo quando se passeia pelo "errado", o toque de midas que converte uma organização de criminosos numa família de amigos, uma prisão num jardim. Mas não é isso que acontece com as grandes estrelas? Brilham livres em cativeiro e esmorecem a claridade naquilo que nós, mortais, chamamos liberdade.

3 comentários:

  1. tu és brilhante, mas não te julgo em cativeiro, antes te vejo na liberdade possível (a larger cage, como a minha porcelana, a minha filha do cinema, enuncia, nem sequer sei se cita, e não me interessa :)

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  2. E você é injustamente simpática. Assim fico convencido. Obrigado !

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  3. Concordo totalmente, Carlos. Junto me a Alexandra para os elogios :)

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