terça-feira, 23 de abril de 2019

Raccords do Algoritmo #13: Citizen Arkadin ou o diabo à solta

No ano de estreia de Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés, 1941), a Universal lançou a adaptação cinematográfica de uma peça da Broadway, que tinha como front men a dupla de comediantes Ole Olson e Chic Johnson. Hellzapoppin’ (Parada de Malucos, 1941) começa no inferno: diabinhos cantantes e sorridentes, mulheres na grelha, tridentes a serem afiados, fumos a surgir de todos os recantos. A comédia e o riso sob o signo do caos e do inferno. Olson e Johnson chegam de táxi às quenturas da terra e rapidamente nos apercebemos que estamos num estúdio. A dupla fala com o projeccionista do filme, a quarta parede cai pela primeira vez, e pedem-lhe para para tentar rebobinar toda aquela parvoíce. Sucedem-se os gags a um ritmo, lá está, infernal, e entra em cena produtor, argumentista, pois há um filme para fazer. O produtor diz que é preciso uma história – ela há-de surgir, um mulher entre dois amigos que a amam – mas tudo não passa de um pretexto para uma parada de malucos (como refere o título português), cabendo ao realizador H.C. Potter tentar unir as pontas a este pedaço de loucura.



Esta loucura tem uma genealogia oficial: desde logo a cultura de vaudeville, depois o slapstick de gente como Chaplin, Keaton, W.C. Fields, Laurel & Hardy, Fatty Arbunkle, etc. Nat Perrin, que escreveu o argumento de Hellzapoppin’ colaborou nos diálogos de Duck Soup (Os Grandes Aldrabões, 1933) para os irmãos Marx, cuja loucura cunhava grande parte do segmento deste tipo de comédia. Depois a linhagem continua, nas décadas seguintes, com Mel Brooks, Jerry Lewis, e, depois, os filmes paródia, como Airplane! (O Aeroplano, 1980), Hot Shots! (Ases pelos Ares, 1991) ou a saga Naked Gun. Falava em genealogia oficial, pois parece-me que há outro raccord mais ou menos improvável que poderia ser seguido. Para isso regresso a Citizen Kane. São várias as referências a outros filmes em Hellzapoppin’. Desde logo, The Cat and the Canary (O Gato e o Canário, 1939), Frankenstein (1931) ou as coreografias de Busby Burkeley. Numa cena, Olson e Johnson atravessam vários cenários – como prisioneiros, como fidalgos, como esquimós –, e um dos adereços era precisamente o famoso trenó, com a palavra Rosebud.

Como disse, os filmes eram contemporâneos um do outro e fazia todo o sentido que o filme tentasse parodiar o expoente máximo do cinema dito sério da altura. Mas existe, creio, um vínculo bem mais interessante do que o da paródia para ligar este Hellzapoppin’ ao cinema de Orson Welles. Uma das coisas que logo no início do filme de H.C. Potter podemos observar é uma espécie de auto-confissão acerca da natureza heterogénea da própria obra. Será isto um filme? Talvez tudo não passe de uma questão de opinião. Se olharmos para as diferentes versões e atribulações de um filme como Mr. Arkadin (Relatório Confidencial, 1955) – uma espécie de tecitura languiana sobre os mecanismos do poder europeu, ao mesmo tempo que uma confissão atribulada das múltiplas identidades do próprio Welles, através do alter ego Arkadin – podemos compreender como a loucura do slapstick ao ponto do fragmento, como vemos em Hellzapoppin’, que destitui a unidade narrativa do filme clássico americano, funcionaria como prenúncio do que viria a ser parte dos dilemas identitários de Welles, que, por sua vez, enformam muito do que seria a correria e o ennui do cinema moderno.

Mas já lá iremos. Antes ainda referir que uma das personagens mais hilariantes de Hellzapoppin’, Pepi – o falso aristocrata de leste que procura uma mulher cheia de papel e que passa o filme a fugir da não menos hilariante e histriónica Martha Raye – representado por Mischa Auer é também outro ponto de ligação a Arkadin. Aqui ele é uma das personagens bizarras que pulula nesta Europa barroca do pós-guerra e que ajuda a reconstituir a identidade de Arkadin.


Não consigo precisar com certeza – creio que terá sido numa conversa de vários críticos dos Cahiers acerca do estado do seu cinema francês – que se adiantava uma ideia interessante. A de que, por motivos de natureza histórica, política e económica, o cinema americano havia nascido sob a égide de uma ideia de clareza e superficialidade. Pelo contrário, no cinema francês, e creio que por uma questão de argumento podemos estender ao europeu, haveria esta ambição de retratar uma certa complexidade do interior e também uma divergência de opiniões que seriam em tudo contrárias a esta ideia de clareza americana. Não será então de estranhar que, como referi, um dos “problemas” iniciais de Hellzapoppin’, problema entretanto vertido em gag, seria essa falta de narrativa clara e “superficial”, no qual os gags pudessem encaixar.

E podemos tomar Mr. Arkadin como o outro extremo dessa ideia, corporizando um modo de fazer fragmentário e complexo do cinema europeu da época. O filme tem produção espanhola, suíça, francesa e, sendo de um cineasta americano, ele ilustra bem aquilo que foi a arte de Welles no seu período de exílio europeu. Com períodos de rodagem em Madrid, em França, na Alemanha Ocidental, e montagem e pós sincronização de som em Paris e Roma, foi depois terminado pela mão do próprio produtor Louis Dolivet, estreado em Londres em 1955, sendo que, nessa mesma altura, começou a circular também uma versão espanhola. Em 1958, os Cahiers consideravam Mr. Arkadin como o melhor Welles e integrava uma lista dos 12 melhores filmes de todos os tempos.



Nesta odisseia de Arkadin, processual e kafkiana, a estrutura heterogénea do filme, como marca da tal complexidade do cinema europeu, está integrada na própria trama de uma obra de género – a série B – com traços de cinema experimental. Trama que gira em torno de uma personagem misteriosa – um milionário do leste europeu – o próprio Welles corporizando Arkadin, que paga a um oportunista, entretanto pretendente da sua filha, para descobrir o seu passado antes deste se ter tornado rico, passado esse que havia esquecido devido a amnésia. Trata-se de um inquérito que tem sido visto como uma colagem das peças do que seriam as inúmeras variantes da identidade europeia estilhaçada pelas guerras. Ou, como refere Jim Hoberman, num texto sobre o filme, tratando-se de uma obra sem um original reconhecido (há várias versões, nenhuma a definitiva), “Arkadin tornou-se o seu próprio Arkadin”.

E neste aspecto há uma semelhança e uma diferença fundamentais com Rosebud parodiado com Olson e Johnson. A semelhança tem a ver com o facto de ambos os filmes procurarem na luz ao fundo do túnel, uma verdade qualquer, uma identidade estável, explicadora, e, nos dois filmes, velada. Mas em Citizen Kane terminamos com essa cereja no topo do bolo, a tal simplicidade inicial que é o vértice do que viria a ser o cinema do Welles, que, como parece, faz a transição entre os dois extremos do argumento dos críticos dos Cahiers: da simplicidade clássica ao cinema europeu (neste caso, moderno; e por isso o argumento peca por demasiado sumário). Enquanto isso, Mr. Arkadin faz essa mesma busca de uma síntese de identidade mas, ao chocar de frente com ela, prefere o oblivion, não consegue computar. Tenta obliterar uma ideia de identidade única e explicadora e, não sendo capaz, termina-se a si próprio enquanto herói no filme. É também Welles que, a dada altura, perde o controlo do próprio filme, lembre-mo-nos.



Ainda sobre a questão da identidade convinha repensar no caos de Hellzapoppin’. Uma das figuras mais massacradas no filme é o próprio argumentista do filme. Como vimos é preciso engendrar uma pretexto narrativo. Mas mais: tratava-se de passar do teatro ao cinema a peça original. Assim, a colecção de gags procura explorar ininterruptamente uma “identidade própria” do cinema: fotografias devêm ecrãs de cinema, sobreposições cerram partes do corpo, as personagens vão parar a outros géneros e filmes como o western, o filme é interrompido por inserts de anúncios no ecrã a interpelar o espectador, a película sai do sítio e são os personagens que têm de a arranjar, os efeitos sonoros são surreais e à la carte, brinca-se com a censura, com as salas de projecção, com a arquitectura dos estúdios e a organização da equipa de cinema, os personagens vêem o próprio filme em abismo, canta-se, cai-se, dança-se, declama-se. Numa palavra, é o inferno. Tudo surge em vórtice, experimental, destituído da sua convencionalidade: sejam planos, verosimilhança, raccords. E há uma senhora que grita OSCAR! nas cenas iniciais, surgindo de todos os lados [na vida real o filme foi mesmo nomeado para um Óscar, por uma música que não surge na obra (!)].

Entretanto, o que é interessante é que no final do filme, a dupla de comediantes e mestres de cerimónia decide sabotar o espectáculo musical de uma das personagens, encenador, para que o amor triunfe. E, depois, o milagre dá-se, ou nem tanto, estamos aqui a falar de identidade, ainda. Quanto mais louca, pervertida, sabotada é a convencionalidade do teatro, maior sucesso acaba por ter, aos olhos do produtor que ia avaliar o show. Ou, por outras palavras, é a loucura desta parada de malucos que ganha uma certa aceitação e identidade próprias no seio da própria codificação de géneros do cinema de então.

Para além da já referida genealogia, que convocará os nomes da comédia americana que se seguirão, importa pensar este caos como uma preparação para a fragmentação do cinema experimental e sobretudo, pela forma como esta, nas mãos de uma sensibilidade europeia, servirá de material de trabalho para a construção de todo o tipo de ambientes que procuram uma certa interioridade e se afastam da dita superfície (aparentemente) clean do clássico americano. Em Mr. Arkadin basta ver os enquadramentos bizarros, as sombras impossíveis, os olhares misteriosos, o ritmo acelerado como uma “parada de malucos” solene e bizarra, as sequências de festas, e bailes com as máscaras de Goya, as grandes angulares, a Europa destituída de vida natural (como se depois de Rossellini só sobrassem, de facto, ruínas e despojos de uma paranóia), a dimensão de pesadelo e perseguição constantes. Ou ainda a dicção marcada de Robert Arden, actor de rádio, a meio caminho entre gente como Humphrey Bogart, Sterling Hayden, Dana Andrews ou Richard Widmark e Jean-Paul Belmondo de À bout de souffle (O Acossado, 1960) em diante.

Desta forma, a experimentação infernal de um filme como Hellzapoppin’ acaba por funcionar como uma preparação para o cinema moderno e a forma de encontrar expedientes visuais para narrar, ilustrar, construir, problemas da ordem do interior, do dilema mental e psíquico. Estamos assim perante um trajecto lento, agreste e cheio de altos e baixos: o truque da vaudeville que passa a cinematográfico e a matéria progressiva de exposição dos dilemas da invisibilidade do homem e da visibilidade do próprio cinema. Em Welles, a figura do mágico é sempre da ordem do manipulador mental, o metteur-en-scène que ilude, e cada vez menos, como acontecia com H.C. Potter, aquele que faz passar, anonimamente, o truque. De um a outro, os truques interiorizam-se, sem que, no entanto, percam o seu poder.

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