Ela está internada e eu de férias. Ou será o inverso? Eu, interno, e ela passeando nos corredores da hospedaria, pedindo lume, pedindo afecto. O Senhor ressuscita e as pessoas tornam-se mais pesadas. Os vapores do álcool, os pudins, as idas a Santiago, as cruzes de flores, a abstinência. O cão a ver se lhe cai alguma coisa, num mar de pernas bamboleantes, unidas. A menina borrifa a sopa, o galo cocoricoca, é dia do Senhor e dos senhores não passarem fome. Rir não é uma missão, é um dom. Mantenho-me à tona da escrita, invento uma loucura qualquer, colecciono post-its de moleirinha velha. Penso nas nuvens escuras, no padre embriagado, na luxúria de negro e na circunspecção de berloques e brilhantinas. Um senhor morreu a rebentar um foguete, um borrego não sobreviveu à luz da eternidade, nas redes sociais mandam-se larachas e ovos virtuais. A bébe dança, os avós brilham, os ovos engolem-se. É Páscoa. Depois regressa-se aos internamentos do quotidiano, da cidade. As nuvens despejam o seu líquido em cheio nas estradas, homens arranjam as tetas e as letras de um anúncio de outdoor, os pneus mantêm a pressão. Um cafezinho, um chocolatinho, um demoniozinho, ou a duração da viagem. Chego, o cão caga e penso no caracol que faz crack, subitamente, numa viela escura. Pus-lhe o pé em cima, maldigo a via pública, a fragilidade da vida. Vou para a cama a rezar para que ressuscite. E que ela melhore. E que na próxima Páscoa haja bagaço e rios de felicidade. Não te vi. Desculpa-me, caracol.
:)
ResponderEliminar(eu também peço desculpa aos caracóis pisados, mas salvo muitos retirando-os dos passeios e das ruas, depositando-os em muros e nas plantas e flores dos jardins alheios; para que caguem, precisam de comer :)
Fiquei a pensar na expressão 'internamentos do quotidiano', que é formidável e certeira.