sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Desejo e pós-desejo


É um clássico. Contudo, não é referindo-nos à extrema qualidade de OS FAMOSOS E OS DUENDES DA MORTE, filme do realizador brasileiro Esmir Filho, que o dizemos. Um clássico, pode dizer-se, é a situação em que esta sua primeira longa-metragem demonstra todas as características de uma primeira obra e sua necessidade de provar a cada passo, a cada plano, a sua enorme virtuosidade. Os ângulos inusitados, a exploração das potencialidades do home video, os movimentos de câmara, a fotografia, o recorte indie da banda sonora (com especial reverência a Bob Dylan) tudo contribui para a manufactura do objecto «perfeito» que tem multiplicado aparições e prémios um pouco por todo o mundo (Rio de Janeiro, Cartagena, melhor filme; Gadalajara, São Paulo, prémio para a fotografia de Mauro Pinheiro).

Mas sejamos honestos. Esmir Filho é um bom realizador que irá certamente dar que falar nos próximos anos no Brasil. Disso restam poucas dúvidas. No entanto, contrariando uma das frases mais interessantes da obra, «Longe é o lugar onde a gente pode viver de verdade», OS FAMOSOS E OS DUENDES DA MORTE encerram um problema de proximidade, na medida em que todo o seu virtuosismo estético funciona muitas vezes como barreira à verdadeira emoção das personagens da adaptação do romance original de Ismael Caneppele, que Esmir viu como um veículo interessante para continuar o tema da adolescência, espelhado nas suas anteriores curtas-metragens. Da sua breve carreira antes desta longa destaque para ALGUMA COISA ASSIM, que venceu o prémio de melhor argumento em Cannes em 2006 e paragem obrigatória no famoso TAPA NA PANTERA, um vídeo no youtube com mais de 10 milhões de visionamentos.

A trilha de experimentação opressiva desta sua obra, vagamente surrealista, toca por vezes os ambiente de Kelly Reichardt ou mesmo o mal-estar adolescente post-Columbine de Antonio Campos (pensamos no recente AFTERSCHOOL) sem no entanto conseguir tocar o fundo de um desejo também ele adolescente (e é disso que o filme trata, de um jovem numa zona rural brasileira a braços com pequenos grandes traumas de uma relação a três mal resolvida). Fundo que se adivinha estar no fim dos interlúdios poético-formais, no fim do nevoeiro «escandinavo» do interior brasileiro e dos trajectos campestres para os quais Esmir Filho chama constantemente as suas personagens.



Interessante é verificar que o ambiente de uma certa claustrofobia estilística no qual os personagens de OS FAMOSOS… estão imersos, está também presente em VOODOO, a nova curta-metragem de Sandro Aguilar, que complementa a sessão. Em ambos há uma predominância pelos planos apertados, sem profundidade de campo, ou com linhas que cortam (em toda a «dignidade» dir-se-ia) pessoas e objectos expectáveis. No entanto, se na obra de Esmir há uma aproximação que é do domínio do realce emocional, já em VOODOO a perda, a desorientação, é perfeitamente assimilada a um universo de claustrofobia, física e cinematográfica. E eis que falamos outra vez de distância – Sandro Aguilar não faz outra coisa senão instalar-se nela - pela derivação, pela luta, pela integridade dos objectos a irromperem nas narrativas de humanos. E humanos não é aqui uma palavra despicienda. E eis que falamos outra vez de desejo, um desejo já filtrado pelas leis da similaridade e do contágio, princípios com que Aguilar apresenta a sua obra.

A Lei da Similaridade que produz a realidade pela imitação, princípio tão caro ao cinema, explica-se em VOODOO pelo universo da simulação, a acção de formação dos hospedeiros de bordo, fio narrativo que fixa a inquietação de Albano Jerónimo e Isabel Abreu num espaço. A Lei do Contacto sugere que a influência de coisas que tenham estado em contacto mantem-se posteriormente mesmo quando estas já estão distantes. Embora este princípio possa tentar ser encaixado no drama, no back story das personagens, será muito mais útil sublinhar que a aventura negra, solitária, que Sandro Aguilar começou com A ZONA, e que continua com este VOODOO, produz uma influência mútua (que não mima, porque não é clássica, antes «toca e é tocada por») entre as pessoas e os objectos, uma continuidade, dir-se-ia (perdoem-me o lirismo) místico-íntegra. Seja ela entre partes de um reactor e uma face nervosa, seja entre uma parede abandonada pela luz e um olho que por acidente pertence ao campo. Como se as situações que vale a pena serem mostradas fizessem parte de um todo, que se influencia constantemente pelo contacto mas também afastamento, em que pouco sentido fará falar de uma predominância das pessoas em relação ao real que as abafa, as «claustrofobiza».

Neste sentido o filme de Sandro Aguilar permite pensar em como um sorriso pode ser inerte por relação a uma linha de tecto, como um boneco terá muito mais urgência em ser salvo do que aquele que o massaja cardiacamente. Nesta singular afirmação filosófica da continuidade do real, há um transe expresso nessa mútua influência, uma linha implacável que trabalha a transição cinematográfica: das formas às coisas, das coisas às pessoas, das pessoas aos planos, dos planos ao espectador, produzindo-se uma forte tensão, um todo inexplicável que engole e reflecte as tensões das pessoas que vivem nesse mundo. Este olhar singular, o de Sandro Aguilar, uma espécie de «gémeo mau» do cinema português, parece empurrá-lo para um dos seus lugares de predilecção, um espaço de solidão, sem holofotes. Mas essa sua segurança a manufacturar lugares de isolamento permite extrair, sem lugar a grandes dúvidas, uma certeza: a de Sandro Aguilar ser incontestavelmente um dos maiores talentos do cinema português contemporâneo.

Ambos os filmes estreiam na próxima quinta-feira, 29 de Setembro.

1 comentário:

  1. Retornado sua visia às "Tertúlias" e mais do que encantado com o que encontro aqui! Um Blog e tanto! Oba!!! :-) Já o adicionei para seguir... Um abraco forte daqui de Viena!
    Ricardo

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