Dois anos após MOSSAFER (The Traveler), Kiarostami, entre curtas-metragens de vertente mais didáctica volta a ensaiar nos terrenos da ficção os contínuos dilemas do início da adolescência. LEBASI BARAY-E ARUSI (The Wedding Suit), que não chega aos sessenta minutos, narra, com extrema crueza, a «luta» do seu jovem protagonista, que trabalha com um alfaiate, entre o universo emocional e profissional. Por um lado, para não perder a amizade do seu amigo tem de emprestar-lhe, sem o patrão saber, um fato novo que um jovem cliente de classe alta encomendou. Por outro lado, há que deixar o dito fato impecável para o momento em que o cliente o irá buscar sem que ninguém saiba de nada.
Se este tipo de problemas tinham começado já bastante atrás, será provavelmente com KHANEH-YE DUST KOJAST? (Where is the Friend’s Home?) de 1987, a primeira das suas obras-primas, que a exposição do dilema infantil por excelência atingirá o seu cume. Mas ainda sobre LEBASI, um dos aspectos mais interessantes é que exteriormente os jovens têm apenas que esperar pelos adultos, servir-lhes chá, embrulhar roupa e pouco mais. Contudo, a classe de jovens trabalhadores de Teerão revela uma faceta escondida de dureza nas relações entre eles, de pressão psicológica, da necessidade de obterem favores uns dos outros, uma espécie de ante camâra da inexorabilidade do mundo adulto. Do filme, Kiarostami disse que marcou um ponto importante nas suas experiências com o som, tendo sido o seu primeiro filme na cidade. A base de inspiração para LEBASI foi uma imagem de um jovem a regar ansioso uns gerânios (plano final do filme) a partir do qual se constroi uma pequena história sobre o desejo infantil de ter roupas novas, ir a festas e ser já um pouco mais crescido.
No ano seguinte, 1977, Kiarostami realiza a sua primeira obra fora do programa da Kanun (o Instituto do Desenvolvimento Intelectual das Crianças e Jovens Adultos no Irão). Trata-se de GOZARESH (The Report) um filme de quase duas horas que abertamente não se foca no mundo infantil. Dois anos antes da revolução, esta «relação» põe em paralelo a desagregação de um casal de classe média e a corrupção no Gabinete do Ministério das Finanças. Mahmad Firuzkui, o marido, é acusado de aceitar subornos e de jogar esse dinheiro no casino. Num tom desesperado e sombrio, onde a degradação emocional surge quase como consequência de uma degradação moral, GOZARESH é um filme onde se narra um país à beira da ruptura (e na sua exactidão talvez se consiga ler o motivo pelo qual o filme ficou esquecido na história) e onde Kiarostami pôde construir uma das suas marcas mais importantes como cineasta: o final em aberto, o seu «buraco negro» que dava ao espectador a possibilidade de construir para além da sala de cinema. «(…) o espectador não sabe como acaba a história e tem de repensar o filme para poder encontrar o seu próprio final. Gostei desta experiência porque fugia às regras da nossa cinematografia. Era mais ou menos como deixar em branco a última página de um livro e oferecê-la ao espectador: conta-se a história até à penúltima página e deixa-se a quem leu o conto a possibilidade de o terminar. É isto que eu entendo por criatividade do público: se todo o livro fala de uma decisão que o protagonista vai tomar, mesmo faltando a última página, podemos mesmo assim imaginar a escolha que ele fez».
A partir de uma experiência que aconteceu na escola do seu filho, Kiarostami filmou em 1979, portanto em pleno início de revolução, GHAZIEH-E SHEKL-E AVAL, GHAZIEH-E SHEKL-E DOU WOM (First Case, Second Case). A situação, ponto de partida deste documentário, tinha sido o facto de um professor, ao ter ouvido um barulho no fundo da sala de aula, enquanto estava de costas no quadro, ter tomado a seguinte decisão: ou o jovem que fez o barulho se acusa, ou alguém o faz por ele, ou toda a fila de onde proveio a perturbação, ficaria de castigo durante uma semana. Com uma estrutura aparentemente semelhante a DOW RAHEHAL BARAYE YEK MASSALEH (Two Solutions for a Problem), este é um filme que faz a transição perfeita entre os reconhecidos dilemas do crescimento e GOZARESH, como fim da linha, fim da possibilidade de fazer o melhor. Essa transição, pensamo-la, porque a ideia de Kiarostami para este filme foi redramatizar a situação e ouvir personalidades da política, da religião, do cinema sobre a atitude dos alunos e do professor. Ou seja, ainda o dilema adolescente mas já a visão adulta sobre ele.
Quando Kiarostami foi ter com o director da televisão pública do Irão para o entrevistar para DOW…, nesse próprio dia rebentou a revolução, pelo que o filme esteve parado seis meses, tendo-se entretanto, por motivos de força maior, mudado a lista de personalidades a entrevistar. O filme foi apresentado no primeiro festival de filmes pós-revolucionários para jovens e recebeu o Grande Prémio. Nessa altura propôs-se fazer até uma versão internacional convidando ministros de outros países a dar a sua visão da situação apresentada.
Tal alarido - e ainda hoje DOW… é um dos filmes mais proibidos no Irão - deveu-se ao facto desta ser uma obra sobre a liberdade que em pleno conflito pôs muita e boa gente a falar a favor ou contra a delação, o que implicaria para uma classe de jovens, futuros soldados, políticos, comerciantes, ser estimulados a denunciar os seus colegas? E o que dizer da atitude do próprio professor e consequente sistema de ensino? Este filme social, que fala de um sistema político, mais do que de qualquer outra coisa, é hoje um documento soterrado sobre a revolução e sobretudo sobre a relação do homem e as suas regras interiores. Em questões que envolviam a honra, a formação de personalidade, seria sem dúvida constrangedor ver personalidades a defender um dos lados da barricada, para depois da revolução, mudadas as cadeiras, fazerem exactamente o oposto.
É aqui portanto que o universo da formação de Kiarostami encontra a sensibilidade política das suas futuras obras, isto para além de abertamente tratar de um dos seus temas maiores: a denúncia vs. honra.
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