quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Lola, Brillante, Lola

Depois do sadismo impossível de Kinatay (2009) - vencedor do prémio de melhor realizador na edição de Cannes desse ano – e dos sorrisos amarelos com que foi presenteado na sua terra natal, Brillante Mendoza precisava urgentemente de se lavar. Aproveitando a eminente estação das chuvas e consequentes inundações nas Filipinas, resolve banhar-se nelas, na sua luz escura, no seu vento, e filmar este Lola.

Mas nestas purificações permanece algo que já não se lava, que já não sai: um forte sentido de auto-descoberta artística. Daí, neste melodrama proletário, a câmara de Brillante Mendoza continuar a ser uma espécie de fuzil realista que ora sobe, ora desce, vem, vai, entre as personagens ou para além destas. Contudo, mais do que uma necessidade de nos emergir, o filipino ergue-se como presença opressiva, quase xamanística, no mundo de sacrifício das suas duas Lolas, as duas avós que andam a braços com feridas familiares que envolvem os netos. Um foi assassinado, o outro preso por suspeita da morte do primeiro. Perante isto, Lola quer justiça e Lola também quer justiça. Uma quer enterrar o neto condignamente, escolher o seu caixão e saber quem o matou, a outra libertar o “culpado”, o seu neto, sem que isso da culpa seja um assunto para ali chamado.

Se há um lado emocional, lírico, que a ratoeira de Fassbinder sempre procurou esconder, Brillante Mendoza prefere justapor o domínio dos exteriores, como estratégia quase documental, ao domínio da representação naturalista (magníficas interpretações das actrizes filipinas Anita Lindo e Rustica Carpio) e o resultado, um inusitado “lirismo de intervenção”. Joga-se o “pobre” do cinema com o “rico” no cinema para um retrato das diferenças sociais. E essa condição, desperançada, evidencia o imiscuir do social no natural. Do natural, em Lola, salta à vista uma cidade afogada, presa nos ritmos de funerais, de trajectos impossíveis, de estratégias para obter dinheiro. Do social, os tribunais, os créditos, as casas de banho avariadas. Os dois, um.

No filme, os elementos, a chuva e o vento são a exteriorização de um obstáculo que é interior, de superação de trauma da morte e prisão de um ente querido. Este reforço da dificuldade material de subir, descer, entrar, não é de somenos. Enquadra-se num obstáculo físico próprio da terceira idade e nesse sentido Lola é um filme sobre o espaço. O espaço entre corredores, portas, barcos, casas - cubículo, passeios, que têm de ser percorridos, que têm de ser sobrevividos. E nisso, sobretudo nisso, o cinema de Brillante é inexcedível, demonstrando um talento quase sobrenatural para construir uma sombra fantasmática, comovente, que reclama o centro da nossa observação. Mas, e rendemo-nos a ela? Sim. E o enigma de Lola é exactamente esse. É que essa é uma sombra que vê as personagens tão lá no fundo que os créditos, empréstimos, os seguros, sempre presentes, parecem vir do além. Essa é a demonstração mais perversa, mais adulta do que é viver na pobreza, sobretudo porque isso implica a escolha de amar de uma maneira que os ingénuos pensam menos limpa, mas que os sábios sabem ser mais completa. É esse amor que um neto tem ao seu dispor - nas mangas que a avó lhe traz à prisão, nos pintainhos no caixão - que ironicamente este nunca será capaz de calcular. Ironia em Manila.

Mas afinal onde é que Brillante não é assim tão brilhante? A resposta é, nos momentos funcionais, quando a acção ou a cena é clássica e tem de avançar. Como por exemplo nas sequências na polícia ou tribunal.

O final deixa uma noção de desesperança, a tal ratoeira onde há que ser prático. Sem que Lola deixe de ser uma fábula sobre o dinheiro e a sua presença vital, não pode também deixar de ser uma história de sobrevivência. Porque é importante que a televisão da existência não seja penhorada, nem sequer apareça desfocada. Os mortos leva-os o rio.

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