segunda-feira, 13 de setembro de 2010

A economia do sublime

Ao ler Rulfo, um dos maiores nomes da literatura latina, espécie de Salinger mexicano com pouco mais de 300 páginas escritas, apercebemo-nos de um facto inesperado: a brevidade.

A contenção nos fios de páginas, no parágrafo acéptico ou na estúpida simplicidade dos eventos, produzem uma espécie de realismo perverso. Nada é apenas aquilo que é (isso já estamos habituados), mas não o sendo, a vida nessa tal junção económica não hiperboliza uma morte, um desgosto, um espírito, mais do que o faz sobre uma árvore na sombra ou um sulco de terra abandonado.

Eis um excerto de Pedro Páramo, novela que Borges considerava, e percebe-se, uma das melhores novelas da literatura mundial. Cerca de 120 páginas na tradução portuguesa da Cavalo de Ferro.


«-Melhor seria não teres saído da tua terra. O que é que tu vieste cá fazer?

- Comecei por te dizer isso. Vim à procura de Pedro Páramo que, ao que parece, era meu pai. Trouxe-me a esperança.

-A esperança? Isso sai caro. A mim tocou-me viver mais do que devia. Paguei com isso a dívida de encontrar o meu filho, que não foi, por assim dizer, senão mais uma ilusão. Porque nunca tive nenhum filho. Agora que estou morta, dei tempo a mim própria para pensar e ficar a par de tudo. Nem sequer o ninho para o guardar Deus me deu. Só aquela longa vida arrastada que tive, levando de cá para lá os meus olhos tristes que sempre olharam de soslaio, como que à procura por trás das pessoas, suspeitando que alguém teria escondido o meu menino. E foi tudo culpa de um maldito sonho. Tive dois: a um, chamo-lhe “bendito”, ao outro, “maldito”. O primeiro foi o que me fez sonhar ter tido um filho. E enquanto vivi, nunca deixei de acreditar que fosse verdade; porque o senti entre os meus braços, tenrinho, cheio de boca e de olhos e de mãos; durante muito tempo conservei nos meus dedos a impressão dos seus olhos adormecidos e o palpitar do seu coração. Como é que eu poderia pensar que aquilo não era verdade? Levava-o comigo para onde quer que fosse, envolto no meu xaile e, de súbito, perdi-o. No Céu disseram-me que tinha havido um equívoco comigo. Que me tinham dado um coração de mãe, mas o seio de outra. Esse foi o outro sonho que tive. Cheguei ao Céu e aproximei-me para ver se reconhecia entre os anjos a cara do meu filho. E nada. As caras eram todas iguais, feitas com o mesmo molde. Então perguntei. Um daqueles santos aproximou-se de mim e, sem me dizer uma palavra, mergulhou uma das suas mãos no meu estômago como se a tivesse mergulhado num monte de cera. Quando a retirou, mostrou-me qualquer coisa como uma casca de noz: “Isto prova o que te demonstra.”

“Tu sabes como falam de forma esquisita lá em cima; mas nós compreendemo-los. Quis dizer-lhes que aquilo era apenas o meu estômago enrugado pelas fomes e pela pouca comida; mas um outro santo empurrou-me pelos ombros e mostrou-me a porta de saída: “Vai descansar um pouco mais na Terra, minha filha, e procura ser boa para que o teu Purgatório seja menos longo.”

“Esse foi o sonho “maldito”, que me deixou claro que eu nunca tivera qualquer filho. Soube-o tarde de mais, quando o corpo já se me tinha mirrado, quando a espinha me saltou por cima da cabeça, quando eu já não conseguia andar. E, para cúmulo, a aldeia foi ficando deserta; todos se fizeram à estrada para novos rumos e com eles partiu também a caridade de que eu vivia. Sentei-me à espera da morte. Desde que te encontrámos, os meus ossos resolveram ficar quietos. “Ninguém dará por mim”, pensei. Sou algo que não estorva ninguém. Bom vês, nem sequer roubei espaço na terra. Enterraram-me na tua própria sepultura e coube muito bem na cova dos teus braços. Aqui neste cantinho onde agora me vês. Apenas penso que deveria ter sido eu a abraçar-te. Ouves? Lá fora está a chover. Não sentes o bater da chuva?”

-Sinto como se alguém caminhasse entre nós.

-Vamos, deixa-te de medos. Já ninguém te pode assustar. Tenta pensar em coisas agradáveis porque vamos estar muito tempo enterrados.»

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