Os debates tecnocráticos mais interessantes da História giraram quase sempre à volta de falsas questões. Nós por cá somos especialistas nisso. Atente-se ao cinema português, e pior ao seu sistema de suporte financeiro, que nas últimas décadas tem sido vítima de uma dessas. A “grande cisma do nosso cinema” opõe os “catolicistas” do mainstream, que vivem de arremedos corajosos, mas na sua maioria desleixados, de erigir uma indústria audiovisual auto-sustentada e os apologistas de cinema de qualidade notoriamente “superior” aos espectadores que temos. Entre estes há um fosso intransponível feito de coloridas animosidades e alegres querelas quase todas com enorme visionamento mediático e sem nenhum sentido de pragmatismo.
Ora, uma obra como Embargo, a mais recente longa-metragem de António Ferreira, adaptada do conto homónimo de José Saramago, tem como principal virtude expor como é falsa esta dita querela e age muito mais activamente na procura de uma solução do que qualquer uma dessas facções. E fá-lo precisamente porque objectivamente enjeita qualquer um dos lados e transporta uma descomplexada visão do cinema. Sem nunca rejeitar uma forte componente narrativa, a inteligente adaptação de Tiago Sousa (argumentista e realizador da curta El Justiciero) evita a carregada visão mundividente da alegoria do conto de Saramago, e transfere esse problema de trans-ausência de bens, para uma dimensão não menos apocalíptica das relações humanas e familiares.
Nuno (o estreante Filipe Costa) é um homem com um sonho que envolve a felicidade: mais do que “estar bem”, segundo as suas palavras. Em pleno embargo petrolífero mundial, o jovem empreendedor inventa uma máquina digitalizadora de imagens de pés para criar sapatos à medida certa e deposita nela todas as esperanças. Esperanças que envolvem sair da roulote de bifanas onde trabalha e proporcionar uma vida melhor à sua namorada (Cláudia Carvalho) e filha desta (Laura Matos). Um inexplicável acidente mantém-no cativo no seu próprio automóvel, último reduto da uma incompreensão e solidão quase kafkianas, e fazem-no fazer-se à vida mesmo só com quatro rodas.
A forte dimensão irónica presente nos diálogos de Embargo permite a esta história, com um universo vagamente buñueliano, sair de um espartilho autoral e pôr em destaque o lado mais singelo, e no entanto filho-da-puta, do ser humano. É curioso que uma das estratégias de comicidade empregadas pelo filme de António Ferreira seja a da infantilização dos seus adultos e “seriedade” das suas crianças. Elemento que não por acaso surge como marca geracional no qual se integra algum do cinema contemporâneo português mais interessante dos últimos anos, designadamente em algumas obras de Miguel Gomes, Sandro Aguilar ou João Nicolau. É tudo gente com apuradíssimo sentido cinéfilo, mas livre dos constrangimentos de ser adulto antes do tempo, de ver o cinema como uma coisa de vida ou morte, seríssimo, um cinema que à laia de ser sério se tornaria muitas vezes bacoco. Ao invés, trata-se de um espaço de liberdade emocional onde se exorcizam sem traumas a experiência de ser “adolescente” adulto, ou seja, até bem mais tarde, como quase toda esta geração experienciou. Ozu e Playstation, Bresson e póquer, não são neste mundo sinais de estatutos opostos, mas a confluência de uma sensibilidade muito própria. Uma sensibilidade que não hierarquiza o que é próprio de velho e o que é próprio de novo. É nesse espaço de confluência, do qual resulta quase sempre uma ambientação onírica e postiça, que se produz uma identificação vital à geração mais jovem e que mostra um “mundo novo” àqueles com construíram durante décadas o discurso oficial do que deve ser cinema de qualidade.
“Embargo” estreia esta quinta-feira, dia 30, em todo o país, isto depois de já ter arrecadado uma menção especial do júri na edição do Fantasporto deste ano. A não perder.
Ora, uma obra como Embargo, a mais recente longa-metragem de António Ferreira, adaptada do conto homónimo de José Saramago, tem como principal virtude expor como é falsa esta dita querela e age muito mais activamente na procura de uma solução do que qualquer uma dessas facções. E fá-lo precisamente porque objectivamente enjeita qualquer um dos lados e transporta uma descomplexada visão do cinema. Sem nunca rejeitar uma forte componente narrativa, a inteligente adaptação de Tiago Sousa (argumentista e realizador da curta El Justiciero) evita a carregada visão mundividente da alegoria do conto de Saramago, e transfere esse problema de trans-ausência de bens, para uma dimensão não menos apocalíptica das relações humanas e familiares.
Nuno (o estreante Filipe Costa) é um homem com um sonho que envolve a felicidade: mais do que “estar bem”, segundo as suas palavras. Em pleno embargo petrolífero mundial, o jovem empreendedor inventa uma máquina digitalizadora de imagens de pés para criar sapatos à medida certa e deposita nela todas as esperanças. Esperanças que envolvem sair da roulote de bifanas onde trabalha e proporcionar uma vida melhor à sua namorada (Cláudia Carvalho) e filha desta (Laura Matos). Um inexplicável acidente mantém-no cativo no seu próprio automóvel, último reduto da uma incompreensão e solidão quase kafkianas, e fazem-no fazer-se à vida mesmo só com quatro rodas.
A forte dimensão irónica presente nos diálogos de Embargo permite a esta história, com um universo vagamente buñueliano, sair de um espartilho autoral e pôr em destaque o lado mais singelo, e no entanto filho-da-puta, do ser humano. É curioso que uma das estratégias de comicidade empregadas pelo filme de António Ferreira seja a da infantilização dos seus adultos e “seriedade” das suas crianças. Elemento que não por acaso surge como marca geracional no qual se integra algum do cinema contemporâneo português mais interessante dos últimos anos, designadamente em algumas obras de Miguel Gomes, Sandro Aguilar ou João Nicolau. É tudo gente com apuradíssimo sentido cinéfilo, mas livre dos constrangimentos de ser adulto antes do tempo, de ver o cinema como uma coisa de vida ou morte, seríssimo, um cinema que à laia de ser sério se tornaria muitas vezes bacoco. Ao invés, trata-se de um espaço de liberdade emocional onde se exorcizam sem traumas a experiência de ser “adolescente” adulto, ou seja, até bem mais tarde, como quase toda esta geração experienciou. Ozu e Playstation, Bresson e póquer, não são neste mundo sinais de estatutos opostos, mas a confluência de uma sensibilidade muito própria. Uma sensibilidade que não hierarquiza o que é próprio de velho e o que é próprio de novo. É nesse espaço de confluência, do qual resulta quase sempre uma ambientação onírica e postiça, que se produz uma identificação vital à geração mais jovem e que mostra um “mundo novo” àqueles com construíram durante décadas o discurso oficial do que deve ser cinema de qualidade.
“Embargo” estreia esta quinta-feira, dia 30, em todo o país, isto depois de já ter arrecadado uma menção especial do júri na edição do Fantasporto deste ano. A não perder.
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