segunda-feira, 29 de dezembro de 2025
Em março de 2025 comprei o
primeiro livro de Djaimilia Pereira de Almeida. Não conhecia nada da autora, escolhi-o
pois creio que era o mais recente. Em dezembro deste ano, por impulso, tirei-o
finalmente da estante. Após uma leitura espaçada, terminei o livro anteontem.
Entretanto, estava longe de prever que, como por funesta magia, eu próprio iria
perder neste período em que lia o “Livro da Doença” o meu pai. Eis, pois, um
livro de luto e um leitor de luto. Uma comunhão na perda e na sobrevivência à
perda. Antes do dia fatídico recordo-me de pensar que o livro mais ou menos a
partir das 100 páginas (do terceiro capítulo em diante) parecia estagnar,
conhecida que estava a premissa. Como se desse uma volta sobre si mesmo e
regressasse ao início. Isso fez-me desacelerar a leitura na altura. Mas, com os
acontecimentos dos últimos dias, dei por mim a querer eu próprio retomar um tempo
em que o meu pai estava vivo, reviver cada momento como se pudesse eu agora fazer
tudo certo, saborear cada instante. Só então compreendi como uma certa
estrutura circular da escrita de Djaimilia Pereira é, creio, a escrita desse luto,
de um processar lento que volta ao mesmo, que quer compreender esse vazio. No
seu caso querer imaginar o livro inacabado, ao mesmo tempo que este deve
permanecer aberto para que o seu pai não desapareça em definitivo. Não, isto
não é uma impressão crítica ao “Livro da Doença”, embora me agrade pensar que
escrever seja, no caso, o melhor dos exorcismos, sobretudo quando fechado num
livro, numa obra acabada, mais protegida da circulação do ódio do momento das
redes sociais. Quase no fim, Djaimilia escreve: “Podia escrever para sempre
este livro, mas seria o mesmo que deixar o meu pai morrer para sempre. Para que
ele ressuscite, é preciso que a sua voz cesse. É preciso que cesse o meu
egoísmo de querer ouvi-lo para sempre.” Ontem mesmo sonhei que conversava com o
meu pai, não sei se dormindo, ou se entre o sono e a vigília. Hoje que já terminei
o “Livro da Doença” — que no caso do meu pai, foi súbita — aprendo que é
preciso começar a afastar a sua voz e compreender a sua presença na luz das
coisas, como um silêncio que lentamente floresce. Ou como diz Djaimilia, que
ressuscita.
domingo, 17 de agosto de 2025
Caminha lentamente. Põe os pés lado a lado, como um pato. Tem excesso de peso. Tem falta de fios de marioneta que a puxem para cima, que a sustentem junto do céu. Precisa de pão. Precisa de amor. Não a tratam pelo nome. Não lhe conhecem a casa. Tem diabetes. Tem lágrimas. Tem o rosto desfigurado pela tristeza. Mas avança. É domingo. Avança. Com vagar. Com certeza. Pede tudo, recebe pouco. Nas escadas da igreja não lhe conhecem o nome. Lá dentro também se pede. Lá dentro fazem-se promessas. Cá foram ignoram-se as súplicas. O filho ganha pouco. O filho está longe. O táxi não vem. Está ao sol. A tarifa vai ser 5, apesar da pouca distância. Lá dentro olham-se nos olhos os milagres. Cá fora desviam-lhe o rosto. Come numa mesa à parte. Ninguém lhe segura a porta. Não lhe sabem o nome. É domingo e pouca gente veio. Às vezes enfrento-a. Outras vezes afasto-me, porque ela tem no seu rosto o meu falhanço. Um dia comprei-lhe um bolo de aniversário. Fazia anos o filho. A nobreza nos pés pesados. Caminha lentamente. Mas avança.
O dom
Nos caminhos mais íngremes, as respostas
mais certeiras. Pelo contrário, nos trilhos mais amenos, as perguntas mais
acesas. Disse-lhe que tinha jeito com pessoas, a palavra no lugar certo,
convidar as pessoas a bordo para o paraíso ou a borrasca. Rodeámos a igreja
enquanto falávamos de dons, aquilo que aquele que lá estava dentro nos dá, ou,
em acreditando, aquilo que a natureza nos oferta e nunca nos tira até ao sopro
final. Ela sabia do meu dom. Qual é? Interessa-nos
o dom como dádiva, compreender aquilo em que somos melhores a dar, a devolver,
pois receber tem tédio e não faz sair do lugar. O meu preto vai sempre à
frente, não quer saber de dádivas, já deu quase tudo. Chegar a casa é a prenda
do dia. A manhã ainda está quente, os caminhos ofegam com a falta de oxigénio
fresco. Ela diz-me que tenho de arranjar tempo, que é afinal um espaço, para contar
a toda a gente estes passos, estes passeios, com cheiro daquele presente que sempre
parte, mas que assim fica plantado no tempo, a florescer. No final da minha
outra extensão, o meu castanho aspira tudo com uma majestosa felicidade. Daqui
a um minuto regressaremos e ele sabe qual o nosso dom. Todos os dias, ao recebê-lo,
sorri.