quinta-feira, 18 de junho de 2020

Sem cabeça/sem vento




Na vertigem do movimento e da transformação as coisas tendem a ser vistas com o mesmo olhar pesado, sem distinção. O derrube de estátuas é um sinal de transformação. Pelo menos nos últimos 2000 anos não assistimos a outra coisa do que à substituição, alteração, vida e decadência - umas vezes lenta e pacífica, outras de forma abrupta e violenta - dos símbolos de veneração e respeito. As estátuas que hoje caem são obras, mas são sobretudo símbolos. Símbolos de um passado com o qual estamos hoje a braços. Não no sentido de o eliminar, mas de o reavaliar como desigual, injusto. Manter esses símbolos no presente significaria querer mudar as coisas, sem mudar a visão simbólica sobre elas. Os símbolos caem, renovam-se, para que a realidade se transforme. Parece-me isso não só natural, como desejável. Outra coisa bem distinta é vetar obras do passado, consideradas racistas, misóginas, ao exílio e à invisibilidade. Estamos ainda a falar de um desejo de transformação. Mas a censura mostrou-nos que a transformação não pode ser às custas da cegueira. Esse é o argumento das ditaduras: encerrar-se sobre si, abafar o indesejado, controlar o que pode ser visto, dito, pensado. Pelo contrário, quanto menos virmos filmes como "The Birth of a Nation" ou "Gone with The Wind" mais cegos estaremos face aquilo que aconteceu no passado, com as suas qualidades e defeitos, com as suas circunstâncias artísticas e políticas. E, ironicamente, menos teremos consciência do que há a mudar daqui em diante.Vetar à invisibilidade a história é muito diferente da renovação dos símbolos de exaltação da mesma. Uma procura apagar/esconder factos, a outra renova juízos de valor.

E sobre as introduções contextualizadoras diga-se o seguinte. Todas elas, sem excepção, são "bengalas mentais", para utilizar a expressão do Miguel. Mas todas elas sempre foram necessárias para colocar uma obra no seu tempo. Todas elas têm expressa uma visão qualquer - nuns casos de forma mais evidente, noutras de maneira mais implícita - a subjectividade de quem as elaborou. Não podemos presumir que todo o espectador sempre já é capaz de ter um olhar esclarecido e livre de condicionamentos. Os museus, as cinematecas não são outra coisa do que grandes fazedores dessa contextualização. E são vitais. Dito isto, convém ter noção que sempre deveremos permanecer livres de fugir, de contornar, de compreender a dimensão ideológica daquilo que se pode dizer sobre uma obra. (Aliás, basta imaginar a introdução contextualizadora que a netflix faria hoje sobre Gone With The Wind e compará-la com as que se têm produzido ao longo dos anos, para percebermos como sempre está em causa a mudança dos nossos olhares, de vermos as obras à medida que mudamos). Mas acho que é importante frisar que o discernimento do espectador, a consciência crítica, não são coisas que surjam do ar, dados adquiridos, a priori. Quantos filmes, quantas aulas, quantos livros são necessários para ganhar essa distância? A liberdade crítica é coisa árdua de construir, onde se jogam responsabilidades da política de cada estado, embora seja um processo eminentemente individual. Veja-se o Brasil de Bolsonaro ou a América de Trump e veja-se onde levou esse mito que todos já nascemos igualmente críticos e distantes face a uma dada informação. Daí que essa relação entre a fabricação institucional de contextos e a destruição/libertação individual de contextos viva de um necessário equilíbrio. Um que não pressuponha nem que toda a gente seja à partida esclarecida, nem outro que assuma que toda a gente seja à partida pouco inteligente.


1 comentário:

  1. Bom texto. A consciência crítica, mencionada no texto, torna-se extremamente relevante para que a atual e as futuras gerações possam identificar as mudanças dos pensamentos humanos no construir da história, entretanto, concordo que a formação desse senso em meio a um ambiente democrático torna-se complexo, mas não IMPOSSÍVEL. Preservando a liberdade individual e permitindo análises mais humanas conseguiremos chegar lá. A literatura é um bom começo. Abraço de um leitor/ seguidor brasileiro!

    https://wallsbooks.blogspot.com

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