terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

O comício dos Óscares e a culpa católica

Numa altura em que passarem já mais de 24 horas do nefasto efeito dos Óscares encontro-me ainda a recuperar de uma crescente culpa católica que se apodera de mim de ano para ano. "Lá foste tu pecar novamente este ano... Então o que é que eu te disse no ano passado?". Isto era uma vozinha interior a falar. Então não havia solinho ou chuvinha da boa, plantas a respirar e o sorriso da padeira que deixaste escapar na manhã seguinte para veres este ano outra vez a "cerimónia"? Embora cinéfilo, o post-óscares é cada vez mais isto: a culpa do adolescente depois da masturbação temendo que lhe cresçam pelos nas palma das mãos, a culpa do senhor de óculos grossos apanhado a folhear a "Caras" no consultório do dermatologista.
Por esta altura ainda havia salame
E é cada vez mais da revista Caras que falamos. Aquela entrada musical à La Faria com mais meios, entre o stage e o screen, não augurava nada de bom. Depois aquilo passou-se numa lentidão excruciante, a desejarmos que os números musicais fossem mais intervalos em que podíamos ver o chef Hernâni a arquear as sobrancelhas ou um senhor a conduzir um automóvel bem bom e inchado depois de lhe ter caído um viagra no depósito do gasóleo. Como nada se passou de realmente relevante durante o tempo da cerimónia há que focar no politiquês que falou a política dos Óscares. No trajecto que vai de Obama presidente, passando pelo prémio de melhor filme o ano passado "para" Steve McQueen por 12 Years a Slave até à homossexualidade do host deste ano, Neil Patrich Harris, parece desenhar-se o padrão da máxima liberalidade na land of opportunities

Todos estamos de acordo que era desejável que isto não fosse notícia, que não existissem padrões ainda a modelar as questões das minorias que ainda mostram o fosso. Contudo, a questão deste ano, com todos os vencedores que subiram ao palco a defender uma causa (sejam elas, o femininismo, a igualdade racial, sexual, a luta contra a tecnologia, contra a superheroização do cinema; Birdman é isto, no fundo) em jeito comício-passadeira-vermelha é que o gesto do activismo social banalizou-se ao estilo da miss que deseja paz no mundo e tudo o resto de bom para todos. Não caio na ingenuidade daqueles que acreditam que já não é necessário defender certas causas. E a prova provada é que isto é ainda hoje em 2015 um assunto. Compreendo ainda a posição dos que defendem que o palco dos Óscares devia estar reservado à defesa exclusiva do cinema, embora isso nunca tenham sido os Óscares. Eles nascem de uma outra preocupação de visibilidade que se exacerba aqui na vociferação vazia da retórica política. A questão, parece-me, tem muito que ver com a banalização dos discursos de activismo ao ponto de duvidarmos da sua eficácia. A questão da hipocrisia é um surplus evidente: todos sabemos que aquelas pessoas não são os estivadores do On The Waterfront, nem o Dolby Theatre um cais de Nova Iorque dos anos 50.

Com isto em mente, as futuras edições adivinham-se ainda  mais chatas com a multiplicação das micro-causas individuais e micro-homenagens dentro da homenagem aos seus que já é o propósito da coisa. Duvida-se é que alguém que tenha ante si 30 segundos de púlpito com milhões de pessoas a mirar não se visse tentado a fazer do seu sucesso um projecto "global" (Iñárritu quis criar ali na hora uma "associação" pela defesa da imigração mexicana e não só, com ele e Alfonso Cuarón como os dois sócios fundadores) ou a falar como o Messias, regressado para junto dos seus fiéis, sublinhando o que devem ter em atenção para os próximos tempos. Aqui jogar-se-á cada vez mais o paradoxo da política na estética: é que certamente nunca como nos próximos anos, os Óscares, ao politizarem-se até aos dentes, se adivinharão tão inócuos no seu lastro. É que brincar à política não é ser político.

Dito isto, e tendo tido desilusões do tamanho de mamutes ao longo dos anos quanto aos vencedores (não posso ouvir falar em Shakespeare sem, cheio de contracções lombares, ficar na expectativa que a ele não se sigam as palavras "in love"), este domingo tudo se passou sem grande problema. Percebendo a conveniência da metáfora de Iñárritu a embelezar a pintura, e vivendo Iñárritu como mais americano do que os americanos, fazendo um cinema mais papista do que o papa, não desgostei de Birdman. Assim como não desgostei do Hawkins de Redmayne em mais uma homenagem, desta vez no subcapítulo dos nerds da ciência em versão coitadinhó-deficiente. Claro, o melhor filme dos nomeados era o do Linklater que, sem fazer um grande filme e onde o dispositivo temporal é o que inova (e nele o tempo que desfigura ou reconfigura as pessoas) era o único que melhor fugia à estética do condensado da clareza e sua ideias mais ou menos pré-concebidas.

E é isto. Agora vou ali defender a causa daqueles que têm fome ao almoço e devem cozinhar os seus próprios alimentos e, para o ano, pecarei novamente, na expectativa que a padeira me volte a perdoar.

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