quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

L’Argent

Oh argent, dieu visible, qu’est-ce que tu ne nous ferais pas faire !


Antes de tudo o mais, preâmbulo. E faço-o com uma dessas sentenças à boa moda antiga: não aceito que ninguém me diga que L’Argent não tem uma das mais geniais cenas de assassinato do mundo. Uma não, duas. Mas sobre a segunda, a do machado dostoievskiano no menos dostoievskiano dos filmes de Bresson, já lá iremos mais para o final deste desabafo. Mas dizia, Yvon, o herói – mas haverá cá desses a habitar a solene carpintaria bressioniana? – Yvon, o homem inocente, sai da prisão onde teve três anos por ter sido condenado injustamente de contrafacção. Plano dele a caminhar na rua com a sua declaração de saída. Plano escuro dele em amorce a bater à porta daquilo que no quadro seguinte se nos revela ser, através de uma placa, um hotel- o Hotel Moderne. A porta abre-se e uma senhora deixa Yvon passar para a recepção onde está um homem. Plano escuro de Yvon que desce uma escada com uma mão manchada de vermelho que, juro, juro, só se repara dois planos à frente quando genialmente a água da torneira que se escapa pelo ralo (do qual sabemos tanto haveria a dizer) passa de incolor a rosa. Há qualquer coisa de indecente em amar um crime no cinema mas esta arte da depuração e da cor merece-me um suspiro.

Depuração sempre foi a palavra de Bresson, ou uma delas. Pode dizer-se, e diz-se, que no seu filme final Bresson atinge uma espécie de pureza material, um zénite da massa bruta com uma forte dose de ironia, uma vez que o projecto foi adaptar um conto de Tolstoy e mostrar as “canalizações” maléficas do sistema da opulência: o capitalismo. Mostrar o tanto ou os males do tanto, com tão pouco, eis o desafio de Bresson e daqueles que muitos consideram ser o seu filme marxista, ou como se conta a história de uma nota de 500 francos. Pegar num centro não humano e fazer o mundo girar já o francês o tinha feito com Au Hasard Balthazar (Peregrinação Exemplar, 1966), um estudo asinino sobre a santidade, que também tem em comum com este filme o facto de expor um estado do mundo por via da circulação. Se aqui a nota circula de mão em mão trazendo desastres aos seus possuidores, acolá era o burrinho que muda de dono ao som da sonata nº 20 para piano de Schubert.

A questão da circulação, que não é menos cara ao capitalismo do que à montagem, introduz em L’Argent a questão da forma como ambos – o sistema político económico e o cinema de Bresson – constroem esse caminho, essa “linha de montagem” e onde querem chegar. A falsidade da nota, inicialmente nas mãos do jovem adolescente a quem os pais não deram mais do que a mesada e que tinha contas para pagar na escola, apenas demonstra o vazio da troca simbólica que a circulação do capital encerra. Sob esse vazio simbólico, que se opõe à troca directa na prisão, carne por dinheiro em mãos debaixo na mesa na cantina, há uma acumulação que se põe em andamento e que faz passar da inocência à culpa, do bem ao mal.

Yvon é o “cristão-ateu” (como Bresson se descrevia ante a religião) agente do “deus vísivel” do dinheiro. E aqui entra a velha querela do que é bressoniano ou deixa de ser e da transcendência das pequenas revoluções versus a imanência dos gestos e lugares quaisquer. Não há como negar que L’argent é um pequeno filme de objectos: a mota, as pistolas, os envelopes, o cofre, as chaves, a máquina fotográfica. E essas coisas têm mãos à volta, pernas, pés e tudo isso, envolto, espaços inertes, o clichet do hotel, a mesa da esplanada, os corredores da prisão, o balcão do bar. Onde eu quero chegar com isto é aqui: Bresson quer contar como vai das mãos do adolescente com a nota falsa que lhe queima de inocência na posse às incandescentes mãos de Yvon que brande o machado nesse percorrer mudo da casa, na qual só se ouve o cão a latir e a despedaçar-nos a certeza de uma salvação, no assassinato-spoiler final do filme. Esse “drôle de chemin”, para usar a expressão de outra drama real da manufactura (Pickpocket, 1959), é feito de pontilhismo materialista, a circulação do seu “capital” são os gestos dos corpos, a música do quotidiano (ouçam a malga dele a arrastar no chão da prisão, o alarme do cofre, o Bach do pai alcoólico da mulher de cabelos grisalhos seguido do estilhaço do copo quando cai do piano) as zonas e tempos de desaceleração dramáticas das cenas, a neutralidade das emoções.

Quando chegamos à tal mão final, o pontilhado já se fez grande e L’Argent é um filme que descreve as roldanas de uma engrenagem que parece encaminhar os seus sujeitos para a perdição. Dá vontade de dizer que podíamos descrever o percurso do filme com o plano em que vemos a porta da prisão pelo qual passa Yvon. Mais do que uma vez lá está o sinal na porta que diz “poussez”. Podíamos pensar que é tudo uma questão de ir empurrando as portas, obedecendo a lógica pull or push para ir progredindo. Mas há um senão. Estamos à porta de uma prisão e ninguém passa sem pôr a chave na fechadura para a abrir previamente. Admito que isto está a resvalar para o abismo do conceptualismo mas tento pôr ordem. A livre circulação do capital, a nota da mão à mão, da inocência ao crime, do lado de cá da prisão ou lado de lá (é maravilhoso que Bresson filme as crianças que visitam os seus parentes presos, num corredor onde estas é que parece estarem presas) é esse sistema fácil do push and pull. Mas como Bresson descrevia numa entrevista sobre o filme, a arte onde tudo está organizado não lhe interessa e o seu cinema funciona com “sistema de chaves”, como sistema de pequenos inícios e revelações que querem dar passagem de um momento ao outro mesmo que, como é o caso aqui, seja para explicar a “organização absurda do mundo e a impossibilidade de mudança.”
 
No final Yvon que matou os donos do hotel e a família da senhora de cabelos grisalhos entrega-se num bar à autoridades. No plano final os espectadores mirones olham a saída dele escoltado pela polícia, seguindo-se um cut to black. Chegados aqui aconselho a ler, senão tiverem mais nada para fazer, e se não se importarem de ler em pdf, o capítulo final de um livro chamado “Neither God Nor Master: Robert Bresson and Radical Politics”. Neste, o seu autor Brian Price, entretém-se a fazer as ligações políticas entre L’Argent e a semi-desilusão da política de François Miterrand em França. Sobre o fim a questão levanta-se, até porque Bresson se escusou a filmar a segunda parte do conto “Faux billet”, onde Tolstoy talhava uma espectacular redenção de todos os corrompidos pelo materialismo, o que significava aquele plano final sem redenção. Este negro final é o negro do pessimismo expulsando-se a cura para a infecção capitalista, do vírus que corrompe de pessoa para pessoa, para um fora de campo do futuro.

É a partir desse fora-de-campo para o qual L’argent nos remete, o local a partir do qual o vemos hoje. É nesse fora de campo, nesse pós filme, em que já não há linguagem, que ainda estendemos a mão para a nota. Ver hoje a crise financeira especulativa ainda na mesma democracia da escuridão, habitada pelo mesmo impotente mirone espectador como o prolongamento da obra de Bresson é uma hipótese tão assustadora quão inspiradora. Talvez valha a pena suster o olhar na materialidade despida do filme como uma outra tentativa do projecto da circulação das coisas, um lado B fantasmático da transacção capitalista. Proposta assombrada, proposta assombrosa a de Robert Bresson.

E no fim de tudo mais, epílogo. Aconselho ainda ver ou rever o ciclo que a Cinemateca Portuguesa dedica a partir de hoje à obra do cineasta do qual Godard disse que era o cinema francês tanto quanto Dostoevsky era o romance russo ou Mozart a música alemã. Há poucas coisas tão boas na vida do que ver assim de enfiada os Bressons todos. E começar o ciclo pelo seu último, o seu fim a ser o nosso início hoje, é um gesto imponente que a programação não deixou passar em claro e que a mim me merece um sorriso e outro suspiro.


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