terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

De que falamos quando falamos de Birdman?

"Envelhecer não é uma guerra. É um massacre". Citação de Everyman de Philip Roth lida aqui em mais um texto brilhante do Rogério Casanova apanhado agora a destempo. É este massacre que vemos no rosto das pessoas quando o corpo decai, tragédia amplificada pelo corpo do actor que multiplica por profissão os espelhos e promontórios em sua volta. Em 1924, Emil Jannings, atingido pelo tempo, foi despromovido no filme de Murnau, Der letzte Mann, de porteiro símbolo da fachada de um importante hotel ao anonimato das catacumbas das WC's. Essa "chute", o cinema filmou-a, sobretudo no caso dos actores, temperando a nostalgia com a incapacidade de lidar com o fim. Como ditadores de um país só seu recusando-se a renunciar ao poder, os actores em queda tornam-se cegos ao movimento descendente e reafirmam-se a todo o tempo "ready for their close up".
 
Birdman (2014) de Alejandro González Iñárritu
 
Nestes termos o filme de Iñárritu, Birdman, limita-se a imaginar, entre o super-realismo dos tiros muito explicadinho e o realismo mágico de asas demasiado soltas, esse dilema visto de uma outra escala geométrica. Se Jannings tinha o seu "céu" nas portas giratórias da fachada do hotel, Michael Keaton teve o seu céu no céu. A "superheroização" do cinema, aqui semi-desculpada por Roland Barthes que não se sabe em que filme entrou, apenas ironiza o problema. Percebemos: maior é a decadência daquele que agora recorda os tempos de ouro em que era um super-homem. Mas contrariamente a Jannings que vê no backstage a perdição, Iñárritu quer fazer da cave (o teatro) um local de desesperado re-começo, invertendo as escalas. Entre os céus e as catacumbas vem o espaço da transição e da deambulação enfeitado da percussão constante de Antonio Sanchez na banda sonora que prepara os diálogos-rap da trilha de Keaton-Norton-Galifianakis-Watts, sobretudo estes.

Algures nesse caminho do viajante solitário em busca de um reviver do passado como presente há uma desordenação que chega no backstage do teatro como nos corredores de um hotel perdido nas montanhas (The Shining), como um espaço de crime em continuidade cometido contra a psyche (The Rope) em plena Time Square de cuecas. Se exteriormente vamos todos voltar a viver este ano com Michael Keaton o que já tínhamos vivido em 2009 com Mickey Rourke numa daquelas dobras de piscar o olho da história, o jogo das geometrias do passado e da passagem do tempo faz-se de forma inédita. Honestidade que acomoda as citações de Carver, Shakespeare, Flaubert, por aí fora, mesmo nos diálogos mais simplezinhos com a crítica maléfica e o actor salvífico. 
 
"Not ideas about the thing but the thing itself", a citação do início no espelho de Riggan não serve tanto expulsar as ideias que possamos ter em relação a Birdman mas mais para sublinhar que, ao contrário do discurso paternalista e multi-cultural de Babel por exemplo, há por aqui qualquer coisa de "in itself" além do super filme sobre a decadência ou da decadência de um super-herói.




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