domingo, 24 de abril de 2011

O sorriso de Silvio Berlusconi

O sorriso de Silvio Berlusconi é provavelmente o maior símbolo fetichista que a nova Europa economicista, aquela que substituiu a belicista, possui. Trata-se de um rosto de uma alta figura do estado que quase setenta anos depois da segunda guerra mundial faz ainda pensar o momento actual como mero tempo de rescaldo. Para além da conhecida falsa descontracção e confiança como traços da pessoa política, existe no sorriso de Silvio Berlusconi a apocalíptica ideia de que tudo é da ordem do possível. Construção de cidades de milhões de habitantes, gestão de canais televisivos, clubes de futebol, controlo da população através de sistemas mediáticos de cariz arcaico – fascista, controlo do sistema judiciário, controlo da instrumentalização sexual de classes. Controlo. Mas o mais perturbador nesta lógica de construção de uma «sociedade de controlo» é que a tradicional estrutura dualista do soberano é, no caso de Berlusconi, um enigma. Ou por outra, se na maioria dos grandes estadistas, bons ou maus, o sorriso é um exterior de um interior tenso, calculista, incapaz de sorrir, no político italiano, (e talvez seja esta uma das operações de charme de que faz uso o próprio) a descontracção, parece-nos, não é apenas um jogo de espelho mediático. A descontracção do poder com uma só cabeça (algo que o sistema americano já só ostenta falsamente na figura do presidente, dado que se trata de uma máquina que já funciona sozinha) é um traço de personalidade. Será possível que seja algo do domínio da compaixão e da leveza o que mantém a Itália refém de uma estrutura arcaica de poder? O rei a quem se vê os anéis inspira multidões, o rei a quem se vê o sorriso interior permite-se-lhe tudo.

Esta introdução para falar do momento mais marcante, aquela foto de Berlusconi de fita no cabelo, que surge mais ou menos a metade do documentário de Erik Gandini VIDEOCRACY Basta Apparire. Algo apressado pela denúncia, VIDEOCRACY é um documentário que mostra a experiência cultural de manipulação a que Berlusconi sujeitou a Itália através do controlo da televisão pública e privada. Embora surja como pano de fundo toda a informação política de que o estadista italiano se serviu para sucessivas reeleições, o foco do filme de Gandini é sobretudo sobre o retrato de uma geração pouco instruída em Itália que vive os efeitos nefastos da decadência deste star system. Sistema esse que nasceu no início dos anos 80 com o primeiro canal de Berlusconi onde um quiz show feito à tarde mobilizava milhares de italianos pois cada resposta certa dada significava que uma dona de casa incógnita, num bar como estúdio improvisado, tirava uma peça de roupa. Trinta anos passados e milhares de outros programas sobre nada, e são milhares as jovens italianas que desejam casar com futebolistas ou ter uma oportunidade como velinas (dançarinas que fazem passes de dança entre as intervenções dos apresentadores nos reality shows). A indústria dos paparazzi e revistas gossip explodiu e os agentes televisivos são vistos como novos imperadores capazes de dar ou tirar o poder.

Que a decadência da cultura de massas seja óbvia não é um exclusivo italiano. Que a dimensão da manipulação de informação e de pobres destinos seja um efeito dessa decadência também não. O interessante neste VIDEOCRACY é que neste império, ao contrário de outros, ainda há uma cabeça nobre visível a comandá-lo, dir-se-ia na «digna» linhagem de Mussolini, uma figura que em Itália não foi de longe tão escrutinada como o seu, digamos, congénere alemão. Desta forma, VIDEOCRACY permite-se ser uma espécie de plataforma para repensar estas linhagens, questionar o papel dos sorrisos e sobretudo encetar um projecto de renovação identitária que a Itália ainda não abraçou desde o pós-guerra.

2 comentários:

  1. Gostei muito disto, obrigada Carlos!!
    O documentário, VIDEOCRACY, é realmente impressionante e muito válido para pensar a relação das massas com a tirania televisiva e as formas de congregação de um poder dominante, que age com tantos tentáculos, a maioria deles invisível. Muito interessante para analisar e comparar com a evolução da oferta televisiva em Portugal!
    (Se me permites, vou linkar este texto. Cumprimentos!)

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  2. Obrigado Sabrina. Sim é impressionante o que podemos perceber através deste filme. E ele enquanto objecto artístico não é nada de especial...

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