Caminha lentamente. Põe os pés lado a lado, como um pato. Tem excesso de peso. Tem falta de fios de marioneta que a puxem para cima, que a sustentem junto do céu. Precisa de pão. Precisa de amor. Não a tratam pelo nome. Não lhe conhecem a casa. Tem diabetes. Tem lágrimas. Tem o rosto desfigurado pela tristeza. Mas avança. É domingo. Avança. Com vagar. Com certeza. Pede tudo, recebe pouco. Nas escadas da igreja não lhe conhecem o nome. Lá dentro também se pede. Lá dentro fazem-se promessas. Cá foram ignoram-se as súplicas. O filho ganha pouco. O filho está longe. O táxi não vem. Está ao sol. A tarifa vai ser 5, apesar da pouca distância. Lá dentro olham-se nos olhos os milagres. Cá fora desviam-lhe o rosto. Come numa mesa à parte. Ninguém lhe segura a porta. Não lhe sabem o nome. É domingo e pouca gente veio. Às vezes enfrento-a. Outras vezes afasto-me, porque ela tem no seu rosto o meu falhanço. Um dia comprei-lhe um bolo de aniversário. Fazia anos o filho. A nobreza nos pés pesados. Caminha lentamente. Mas avança.
domingo, 17 de agosto de 2025
O dom
Nos caminhos mais íngremes, as respostas
mais certeiras. Pelo contrário, nos trilhos mais amenos, as perguntas mais
acesas. Disse-lhe que tinha jeito com pessoas, a palavra no lugar certo,
convidar as pessoas a bordo para o paraíso ou a borrasca. Rodeámos a igreja
enquanto falávamos de dons, aquilo que aquele que lá estava dentro nos dá, ou,
em acreditando, aquilo que a natureza nos oferta e nunca nos tira até ao sopro
final. Ela sabia do meu dom. Qual é? Interessa-nos
o dom como dádiva, compreender aquilo em que somos melhores a dar, a devolver,
pois receber tem tédio e não faz sair do lugar. O meu preto vai sempre à
frente, não quer saber de dádivas, já deu quase tudo. Chegar a casa é a prenda
do dia. A manhã ainda está quente, os caminhos ofegam com a falta de oxigénio
fresco. Ela diz-me que tenho de arranjar tempo, que é afinal um espaço, para contar
a toda a gente estes passos, estes passeios, com cheiro daquele presente que sempre
parte, mas que assim fica plantado no tempo, a florescer. No final da minha
outra extensão, o meu castanho aspira tudo com uma majestosa felicidade. Daqui
a um minuto regressaremos e ele sabe qual o nosso dom. Todos os dias, ao recebê-lo,
sorri.
terça-feira, 13 de agosto de 2024
Singela festividade
O interior como fortaleza de portas floridas: fechar quando chega a intempérie, abrir quando o sol espreita com seus luminosos raios.
O interior como templo onde todos são bem-vindos desde que convidados ao ritual do dia. Ao templo chegam somente os bem-aventurados; aos portadores da dor e do caos, os perfumes do seu interior afastam sem hesitação.
A ordem e a beleza como adubos do amor e da clarividência do espírito. O espírito ordenado e límpido vê em cada segundo uma singela festividade.
sábado, 27 de julho de 2024
Uma questão de brilho
Por vezes, chegamos a um local desesperados, mimados, ansiosos. Esperamos pela nossa vez, mãos na boca, pensamentos esvoaçando. No momento em que nos é dado o tempo e o espaço de falarmos o nosso pedido, a nossa queixa, há duas coisas muito diferentes que podem acontecer.
A primeira é esta. A pessoa que nos ouve responde-nos: isso é impossível. Ou: tem a certeza? Ou ainda: isso não é bem assim, vai ter de esperar. Essa pessoa tem geralmente um brilhozinho nos olhos, é a chamada pequena crueldade.
A segunda possibilidade é esta. A pessoa que nos ouve diz-nos: isso é impossível... mas estou aqui para ajudar. E depois acrescenta: vou tentar falar com x, ver se conseguimos contornar isto. Se nesse preciso instante encararmos a pessoa nos olhos, também neles mora um brilho, é a chamada pequena bondade.
Nas repartições, nas esquinas, das secretarias, nos balcões, cafés e guichets estes brilhos andam à solta. Pessoas que têm prazer em ver sofrer e pessoas que têm prazer em ver sorrir.
sexta-feira, 26 de julho de 2024
improbabilidade da beleza
Em frente da minha casa nasceu uma pequena flor. Cresceu entre os ferros de uma tampa de escoamento de água. Não sei se se sente apertada, mas bebe do sol diário e da água da limpeza do pátio. Em breve, um pé anónimo - não será o meu - acabará com ela. Contudo, enquanto viver, ela é um pequeno sinal da improbabilidade da beleza.
domingo, 23 de maio de 2021
quarta-feira, 12 de maio de 2021
Le Mépris termina sob o signo do silêncio e do fim, ambos albergando um primeiro olhar de Ulisses de regresso à pátria. Contudo, antes desse regresso que faz terminar, Godard havia filmado a partida que faz começar esse mesmo fim. Como? Filmando a súbita barreira intransponível que se ergue entre duas pessoas que deixam de sentir amor correspondido. Fala-se recorrentemente dos jump cuts como técnica que passa a normalizar a instabilidade no olhar na Nouvelle Vague. Contudo, entre estes dois planos – Camille a ser “raptada” pelo produtor Prokosh e a chegada do marido Paul a casa daquele, minutos, horas (décadas?) depois – há um salto muito maior, um buraco negro. Godard mete naquela meia dúzia de planos um abismo amnésico, onde tudo muda. O fim do amor como uma temporalidade difusa, um jump cut que dura séculos e um bater de pálpebras. Nunca mais saberemos o que fez morrer o amor de Camille e Paul, não vimos nascer o desprezo, mas sabemos que aconteceu algures entre a ruína e o jardim resplandecente.


