A primeira imagem de Mest [Vingança, 1989] do cazaque Yermek Shinarbayev é o rosto de uma tartaruga que avança, lentamente, para a câmara. Ouvimos um respirar ou uma espécie de suspiro. Virá do animal? Nunca o saberemos. Instantes depois e vemos um soberano da Dinastia coreana Joseon que pergunta ao seu conselheiro porque se move ela (a tartaruga) sempre na mesma direcção. Vai na direcção do mar, de onde provém. O filme acabará no mar, também. E no entremeio há uma história de uma vingança que mais do que servir-se fria, servir-se-á apurada, destilada pelo destino, como se fosse sendo entregue a prestações, como o lento caminhar resiliente da tartaruga. Mas isto registei apenas agora, com o cuidado de um olhar mais pesado. A primeira vez que vi o filme (já não recordo exactamente quando e em que circunstâncias; teria sido na televisão ou já na internet?; no cinema não foi, isso sei) só fiquei com duas coisas. O brilho e um menino sentado.
O brilho é fácil de explicar. Desde as primeiras imagens que percebemos que esta é uma obra onde a luz do dia explode nos planos. As pessoas desaparecem na luz intensa do dia, o sol a despejar os seus raios do cimo de uma montanha, o trajecto por um corredor que a manhã faz atravessar pela claridade ou a fluorescência que vem como canhão de cada uma das janelas do exterior para o interior. Em concreto lembrava a foice iluminada – recordemos a queda do bloco soviético, o início da independência do Cazaquistão, não mais do que um par de anos depois da estreia do filme – que é o objecto do crime que dá origem à semente do ódio e da vingança. É uma cena de ouro, literalmente, um ouro que encandeia. Encandeia o julgamento, não sabemos porque o professor resolve matar uma das alunas, e encandeia o espaço, com blocos de luz no dourado das palhas do celeiro, que mais parecem objectos sem substância. Uma espécie de sonho terrível que vai-se a ver e acaba mesmo por ser a realidade. Se este é um filme que passa por várias épocas e espaços – o prólogo no século XVII, a Coreia e depois a China de 1915, a ilha Sacalina, nos anos 30 e 40, ilustrando a convulsão histórica que aquela zona teve entre domínio e influências russas, japonesas, chinesas e subjugação coreana – o mesmo acontece com esse brilho. À medida que a vingança parece aproximar-se da sua substância, os reflexos, as cores vão escurecendo, raiando de sangue e dourado, como se o filme fosse fazendo osmose com o crepúsculo e a tragédia sombria.
E depois havia esse menino sentado. Durante muito tempo ali estava, inerte. A mãe ia construir-lhe uma protecção de palha para o abrigar da chuva e do sol. O seu pai não tinha conseguido vingar a morte da sua meia-irmã e este engravida, sob sugestão da sua esposa já velha, uma mulher mais nova. O intuito parece simples e maquiavélico: ter um filho que se destine a ter como propósito de vida realizar os desejos vingativos do pai. Esses planos do menino sentado têm um poder existencial e político. Por um lado, pode alguém crescer à espera de crescer? Inerte, num estado de hibernação até poder cumprir o seu desígnio? Por outro lado, e isso vem no filme de Shinarbayev desde o prólogo, as pessoas e as tartarugas têm missões e enquanto não as cumprem habitam a elipse ou, quando muito, a espera. Ou as duas. Algo que parece trazer nas suas linhas e contra linhas um modelo de cooperação social.
Finalmente, este é também um filme sobre a poesia. Ou mais em concreto um filme acerca da tentativa da fuga da poesia, da sua vontade em desentranhar-se da injustiça e da crueldade. Como no prólogo vemos, com um poeta do reino a pedir para sair da corte, ao não conseguir lidar com a execução de um lutador que se deixou ganhar pelo príncipe como sinal da sua submissão e foi por isso castigado. Diz o poeta ao soberano: «a injustiça não é um terreno fértil para a poesia». Mas que poesia poderá haver na vingança? A passagem do tempo parece dizer-nos que com ele tudo passa, e que a poesia ganhará ao sangue derramado. Mas este belo filme da nova vaga cazaque, disseminado que é pelo tempo, pelos espaços, pelas épocas, converte a vingança em ironia do destino. Não apaga a vingança, apenas a subjuga a uma enorme roda da vida. Talvez por isso seja fácil de perceber uma ideia que pessoas que se debruçaram sobre este filme sublinham: a humildade que perpassa na nova vaga cazaque, a colectividade de todo o processo criativo, a pouca relevância de um centramento na figura do autor. Ou como diz o poeta: «não existe verdade a ser encontrada que se esconda por detrás da palavra “eu”»
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