Numa altura em que o nosso olhar se tornou, muitas vezes exclusivamente (e o problema aqui está precisamente no advérbio de modo), num instrumento social e politicamente responsável - e que, por extensão a critica ameaça ser apenas crítica cultural, não me parece que um filme como "The Wicker Man" de Robin Hardy fosse hoje possível. Um cristão queimado vivo num grande Golem de vime? Ou, no seu inverso, a condenação moral de uma comunidade de uma pequena ilha escocesa como bizarra e com costumes conotados como obscuros? Mulheres nuas dançando de forma mais ou menos gratuita? Tudo isto é hoje objecto de discussão. E, nesse sentido, a obra de Hardy parece ser um objecto datado. Mas o mais interessante é que o trajecto atribulado do próprio filme - com películas perdidas, rejeitadas, encurtadas, remontadas - o transforma num filme de terror com ligaduras. Momentos extensos de canções folk com vozes entre-cortadas, distantes, distorcidas e Hardy, de vez em quando, avança no espaço como se tivesse sido possuído pela câmara de António Reis, e eis que o terror se maquilha de uma certa poesia e liberdade de olhar para qualquer coisa de forma justa. Penso que é nesses gaps que "The Wicker Man" sobrevive hoje e escapa a esses confrontos do argumento, entre a ordem e a insurreição, entre os mores libertinos e os processos civilizacionais. Pôr os olhos nisto também pode ser uma ode à ironia: foi nas falhas do planeado que o cinema saiu à rua para se imortalizar e se libertar do inquietante e aprisionante enguiço da comparação moralizante entre coisas.
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