domingo, 21 de maio de 2017

Árvore da Cinefilia #7- Vítor Ribeiro


Meados dos anos 90, chego a casa a desoras e ligo a televisão: Harvey Keitel encostado a um carro masturba-se enquanto olha para uma rapariga que simula um felácio. Já tinham passado mais de 20 minutos do filme, mas só no final percebi que era um filme de Abel Ferrara e não me lembro se já tinha visto King of New York, o seu filme anterior. A minha cinefilia começou o seu sustentáculo pela televisão, pela RTP, por uma rubrica da RTP2 que se chamava cineclube e que programava 20 Bergmans ou Hitchcocks de enfiada, a um ritmo de um por semana. Por esta altura, idolatrava Scorsese como “o maior cineasta americano vivo” e assistia neste entretanto ao seu canto do cisne, Casino (1995), e este encontro peculiar com Bad Lieutenant (1992) correspondeu, então, à passagem de testemunho: Ferrara agarrou o titulo de Scorsese, também ele nova-iorquino, também cineasta cristão, mas Ferrara ainda mais à beira do precipício, como vociferava Tricky em Pre-Millennium Tension (1996).

O LT de Harvey Keitel, personagem que dispensa nome, surge-nos imerso em jogo, drogas e religião (os ícones e os rituais): ele diz-se abençoado, vai tornar-se um super-herói cristão, capaz de carregar toda a culpa, incluindo a de dois rapazes que violaram uma freira. Este é um filme que deveria ser contado através de imagens: LT estaciona e a rua acorda da letargia, a câmara colocada do outro lado da rua assiste ao deambular errático de rapazes negros (a New York antes do zoo de Rudy Giuliani, como lhe chama Ferrara), ele entra numa caixa de escadas e persegue outro homem a quem entregará um saco de cocaína e de quem levará uma porção, para o caminho; a performance do corpo nu de Keitel (actor disponível como nenhum outro), feito funambulo por entre álcool e drogas, embalado pelo pungente Pledging My Love de Johnny Ace (tema que também está em Mean Streets; e Ace, mítico cantor de blues, que morreu num intervalo de um concerto enquanto brincava à roleta russa com um revolver); Zoe Lund prepara e partilha a dose com LT, close-up dos dois rostos no auge, ela que co-escreveu o guião com Ferrara, que tinha sido violentada por ele aos 17 anos em Ms. 45 (1981), e que morreu aos 37 de overdose de cocaína; LT refugia-se na igreja (condenado pelo precipício do jogo), depois confronta um Cristo lanhado, por entre bancos de igreja banhados por uma luz imaculada, e encontra os dois rapazes, a quem a freira já perdoou e com quem ele partilha um cachimbo de crack, como um Cristo que acolhe os marginais.

Keitel dá-se ao sacrifício para que aqueles dois rapazes encontrem uma redenção, põe-lhe nas mãos uma caixa com dinheiro e enfia-os num autocarro: "There's no fucking way you're gonna miss this bus". O carro de LT estaciona, um placar publicitário anuncia “it all happens here”, um possível slogan para a nação do sucesso e da abundância, a rua cheia de transeuntes ouve a suplica de Johnny Ace e espreita para dentro do carro: não há maneira de se escapar a este filme.

Vítor Ribeiro*

*Vítor Ribeiro é actualmente o programador de cinema da Casa das Artes em Famalicão, responsável pelo projecto Close-up, e programador do Cineclube de Joane.

Para saber mais sobre a rubrica Árvore da Cinefilia.
Edições anteriores: #1 Francisco Rocha.
                                    #2 Pedro Correia.
                                    #3 Carlos Alberto Carrilho
                                    #4 Álvaro Martins
                                    #5 Leandro Schonfelder
                                    #6 Samuel Andrade

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