terça-feira, 13 de dezembro de 2016

A batata


 No centro da mesa está uma batata. Como ali foi parar, pouco importa. Atenção, escrevo batata e não barata, meus artistas da fome, meus queridos! Ela, a batata, aqui está, prostrada nesta mesa, diria normal e preta, daquelas onde as pessoas almoçam e onde as pessoas jantam. O que não quer dizer que entre o comer e o beber não tenham existido mães a confessar os seus secretos amores, ou outros crimes exemplares, como a húmida ternura por um primo distante. Mas é um facto, agora a mesa carrega com o peso desta batata. Olho para ela: é vermelha e de formas arredondadas apesar da pele rugosa; não é gorda nem magra, tem apenas o tamanho necessário; os desníveis da batata, as suas covinhas, como as das bochechas de um petiz, denunciam que é única; numa das extremidades desponta uma espécie de barbicha, tal qual aqueles homens de barbas muito velhas, que já perto do final dos seus dias até grelam como é próprio da idade avançada. Eu ainda não grelo, mas a batata tem já alguns sinais de começar a fazê-lo.

Mas que interesse tem uma batata? Ou antes, esta batata? Muito simples, meus amorzinhos, é que esta batata é uma máquina do tempo. Não sei muito bem até que séculos irados poderia recuar, até porque nem botões, cabos ou outras engenhocas possui. Mas basta que a olhe de frente para recuar ao início daquela tarde, já nem sei há quantos anos. Do sítio de onde estava tinha reparado naquela figurinha, primeiro nos seus calcanhares de pele rija, enrugados. Ao início não conseguia ver o que fazia, só sentia o movimento contínuo do seu corpo a vibrar no fim do vestido. As costas estavam ligeiramente arqueadas e tinha as mãos metidas dentro do lava-louça. Ou lavava pratos, ou arranjava vegetais, ou cortava a carne. Ou tudo isso ao mesmo tempo. Pelo movimento dos ombros e pela respiração nervosa dava para perceber que o que quer que fizesse o efectuava com desejo de acelerar o tempo. Bastou aproximar-me uns passos mais para perceber que nas mãos da minha mãe estava uma batata. Ela pegava nela como se lhe pesasse muito, como um peso ou uma bolinha de chumbo, e com uma faca descascava-a. Importa precisar esta acção. Com a mão direita segurava uma faca de cabo castanho e lâmina afiada. Com a ajuda do polegar dessa mesma mão ia aparando a casca, que se ia encaracolando como uma fita de serpentina. Não é que descascar uma batata fosse um espectáculo essencial ou divertido, apenas me deixava um tanto incrédulo. A batata nas mãos da minha mãe ficava despida em três tempos, mas os golpes que ela lhe dava entravam na carne da batata, desfazendo os seus ângulos precisos. Com a casca rija vinha sempre um terço ou metade do tubérculo e a batata virava batatinha ou esfera geométrica, sem aquele formato único que só as coisas únicas têm.

Por vezes punha-me a pensar que toda aquela batata junta, a que vinha agarrada à casca e que entrava a um ritmo acelerado no caixote do lixo, dava duas, três, ou mais batatas. Seriam batatas feitas de periferia, de desperdício, alimentos feitos de gestos bruscos, de tempo acelerado e irascível. Mas não era o desperdício aquilo que me intrigava naquela forma de descascar as batatas. É que naquela altura, eu já começara a fazer as minhas próprias experiências. Orgulhava-me de nunca me cortar, de ouvir relatos de amigos para quem um ovo era um alien, enquanto eu subtraía às batatas a sua fina película. Era meticuloso com a batata: segurava-a gentilmente entre as minhas mãos, fazendo-a rodar, como se naquela alegria ela não soubesse que irreversivelmente perdia as suas roupas. Uma vez cortada a casca, era o momento de retirar aqueles pedaços que tinham ficado esquecidos, ou os bocadinhos negros mais fundos que ainda permaneciam encrustados no seu corpo. Retirava-os um a um com a ponta da faca e uma vez concluída a tarefa passava a batata por água. Raras eram as vezes em que tinha de voltar a pegar na faca. Mirava a batata muito grande, irregular, como se de uma obra de arte tivesse nascido outra de cor diferente, e colocava-a depois num recipiente. O processo repetia-se com a batata seguinte.

E não havia nada a esconder. A minha mãe, de mãos febris, assassinava as batatas, mostrando-lhes que o seu fim iria ser trágico, enquanto eu as enganava primeiro, era dissimulado, era gentil com elas, até ao momento em que finalmente percebessem o seu destino. E era isso que me deixava intrigado: como era possível que a minha mãe se vingasse nas batatas, retirando-lhes grande parte da sua dignidade de tubérculo? Naquela altura pensava que a pressa era inimiga da perfeição e que o destino das pessoas se pudesse ler naquelas serpentinas de casca que ora se abanavam suavemente ao compasso do piano, ora se punham a remexer como tontas ao ritmo do hit de Verão mais recente.

Olho novamente para a batata no centro da mesa. É, segundo creio, uma batata feita de presente, como se pudesse irradiar uma luz qualquer. Levanto-me da mesa da qual a observo e vou à gaveta das facas. Retiro uma das médias, bastante afiada, e pego na batata. Naquele instante podia cravar a faca até ao centro da batata e parti-la ao meio, num gesto trágico sem sentido. Mas de que serviria isso, excepto separar em dois um problema? Uma batata do passado, digna e subtil, com a casca fina a ser removida de forma musical e artística por mãos de fada e uma eterna paciência. E uma batata do presente, a quem não iria ser permitida qualquer falha ou irregularidade, nada mais do que um porco recipiente de amido e carboidratos, retalhado e amachucado por anónimas patas. Não. Decido pegar na batata e levá-la até ao lava-louça. Começo a descascar a batata e, ao segundo golpe, percebo que me falha a mão, que não é uma questão de tremura mas sim de peso. Parece que as mãos me pesam muito, como fardos de palha. Tento manter a lâmina à tona da batata e é em vão. Saem dela grandes lascas agarradas à casca e não é que as minhas costas me vergam e os meus calcanhares embrutecem? 

E dei por mim a pensar que houve um momento qualquer, não sei bem qual foi, a partir do qual passei eu também a ser injusto com as batatas. Comecei a descascá-las abrutalhado, anestesiado, com o peso do tempo nas costas, sobre mim. Talvez eu agora já não seja ou compreenda a batata esbelta, aquela que ficava impecavelmente descascada no meio do caminho, a olhar para a possibilidade de qualquer coisa pouco vegetal. Talvez a batata seja ela agora esse objecto possível, sem singularidade ou ternura, olhando incrédula o adorno na mesa ou o peso da faca. E nisso dei-me conta das lições da maternidade: com o tempo pesa-nos a faca com que descascamos o tempo. E há muito lixo acumulado no meio da sala em que outrora nos rimos. Resta então, com assento celestial e quotidiano, essa tarefa de raspar apenas os contornos dos dias, deixando neles intacta a maravilhosa carne da batata, o conduto de uma pequena e vegetal felicidade.

1 comentário:

  1. Lindo. A minha vida numa batata. Poético!! Suave sarcástico e dolorosamente p poético . Não deixemos que a vida nos retire a beleza e a suave gentileza .Vamos barrar de chocolate o azedume. (Como eu te amo)

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