domingo, 13 de março de 2016

Tudo, em vão

Não há pinga de auto-comiseração em Recordações da Casa Amarela, e contudo, é tudo tão feio e tão triste. Um quarto sem serventia, metáfora de um país a pilhas, uma sexualidade gasta e venérea em compasso de espera para um fundo clarinete ou um duchesse pela boca adentro. Tudo isto é lento mesmo que se corra em volta, dinheiro há em rolos mesmo que seja para gastar mal gasto.




Não havendo trabalho de dar penas ao espectador, cada um é dono das suas. A minha é esta. Tão triste é o momento da morte de Mimi. Logo depois de João de Deus levar o cão da prostituta ao canil para ser abatido vemos, noutra cena, a senhoria com uns lençóis manchados de sangue. Ela diz a João que Mimi fez uma dessas operações e lhe morreu nos braços, subitamente. Depois, Monteiro contraria a piedade. E como na cena em que esmifra a mãe —  que trabalha de cu para o ar a lavar escadas — até ao último centavo, João entra no quarto de Mimi para ver se lhe acha o dinheiro que ela diz ter guardado no colchão ou num pote de ferro. Como se fazia na terra dela pois não acredita em bancos. E ele lá vai, a pesquisar tudo, todos os recantos do quarto. Até que finalmente dá com uma boneca no sofá que abre com uma ponta e mola. Esventradas as tripas da boneca de trapos, de lá saem, como em The Night of the Hunter de Charles Laughton, os rolinhos de notas, a massa acumulada ao longo de uma vida de prostituição. Esse é, pelo menos para mim, o momento da suprema tristeza no filme. Não porque ele lhe fique com o dinheiro (por pouco tempo, sabemos), mas sobretudo por pensar como o esforço de uma vida seja todo em prol daqueles objectos tão pequenos, insignificantes, esses rolinhos de nota de conto. Nunca a oposição entre a grandeza de uma vida, de esforço, suor, sono, humilhação, e a pequenez de um objecto, se me tornou tão clara. Quando se diz quão insignificante é a nossa vida, talvez esta seja uma destas facetas. Tão triste o esforço de Mimi. Alguém pegará nele e o levará, para sempre, como se não tivesse sido nada. Como se tivesse sido em vão. Todos nós, sempre, a cada dia que passa, em vão.

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