domingo, 25 de janeiro de 2015

Os solstícios da Júlia

O beijo





Na página da wikipedia sobre "Miss Julie" de August Strindberg, a propósito do contexto da mesma, revela-se a fórmula de Victor Hugo para o naturalismo: faire vrai, faire grand et faire simple. Nas intervenções de Liv Ullman sobre as escolhas para esta sua "cine-encenação" da peça encontra-se a traição à fórmula. No disparatado casting nem Farrel, nem Chastain, nem mesmo Morton poderiam fazer o simples ou o verdadeiro. Quando muito a ideia era que pudessem ser os corpos para o grande, ajustar os dilemas de vida, amor, classe e morte à tradição das grandes figuras. Contudo, o seu glamour, como fantasma dos filmes passados, apenas polui essa noção de simplicidade que surge sobretudo da pureza das emoções. Já as intenções das personagens deveriam manter-se em abismo, obscuras, fazendo da peça da Strindberg o clássico que é. Ao invés, a mise-en-scène redunda em sublinhados desnecessários dessa "profundidade" com a clareza estereotípica das "emoções profundas": a mão na mão, o plano geral do beijo, os suspiros, o sangue a irromper nas flores. "Pormenores", quero dizer, pormenores, que despem a peça do seu véu e a puxam para o mundo dos grandes amores em formato reader's digest

Ainda outra traição: Ullman sabe, ou devia saber, que Bergman, o seu mestre, cujo mestre por sua vez era Strindberg, nunca retrataria o amor com tanta falsa leveza romântica, sobretudo quando o objectivo seria mostrar o negrume, a indecisão ou o abismo.

Resta a forma como Ullman dá corpo visual à metáfora do darwinismo de classe social. Os planos picados ou contrapicados de um filme de personagens-linhas que começam no alto e espreitam curiosas cá para para baixo, e personagens-linhas que começam no baixo e levantam a cabeça para cima, curiosas também. Esses planos de pedestal e de fosso (recordo o último por exemplo, da "queda" de Julie) são as excepções de uma obra que não sabe trabalhar esse encontro de linhas, movendo-se sempre numa contínua linha de pose do bonito e suspirante pseudo-romantismo.

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