Na cor vermelha, a cor horrível em que nos queimamos, como referiu Goethe, há um esforço pela obtenção do que está para lá da razoabilidade, para lá da reconciliação romântica com a natureza. O expressionismo, e suas cores limite concebidas no preto e branco, trouxeram para os seus edifícios, ruas, luz, uma interrupção das linhas rectas. A celebração do obscuro, do oblíquo, não procura qualquer superação mas sim uma dimensão do não orgânico, primeira das forças em jogo no filme de Pabst. Nesta, o Homem e a Natureza (o não indiferente de Eisentein), integram-se e acabam subjugadas. Nessa relação entre forças fala-se da queda, dos homens ante Lulu (Louise Brooks) e de Lulu ante Berlim, o Cairo e finalmente Londres.
Contra esta força, nem sequer demoníaca mas sim não orgânica, dos espaços, do olhar do Inanimado, concorre uma segunda força. Esta reveste a forma da Graça feminina, da compleição fina e satânica. Mas este mistério do feminino, o de Lulu, o da actriz sensual, o da caixa de Pandora, não pode deixar de ser visto como um canto de sereia. Por isso esta é uma força divina e não uma força humana, trata-se antes do primeiro que castiga o segundo. Seja como for, esta segunda força é perfeitamente assimilada e consumida pelo não orgânico. Apesar da submissão desta força divina, espelhada na Graça feminina, esta não deixa de encerrar um mistério porque antes de Lulu fazer qualquer coisa além de olhar, sorrir, já um homem se matou e outro perdeu tudo o que tinha.
E por fim, a obra de Pabst rende-se no seu terço final, a uma atmosfera falsamente dickensiana, um Natal londrino, que esconde, ou melhor, está «aberto a» uma força ou excessividade humana. Humana, finalmente. O homem que não cai em perdição ante o poder de Deus (ou seja, levado a abrir a caixa de Pandora) ou do não orgânico (engolido pela arquitectura), tem de matar. E é precisamente curioso que seja na Londres plena de nevoeiro que Pabst tenha vindo buscar, postumamente, o fulgor expressionista de DIE BÜCHSE DER PANDORA.
Mas sobre este filme, como com outros, é mesmo preciso que a vida nos diga, na claridade da sua não sala de cinema, do que é que está a falar. Os filmes importantes são regra geral sobre as imagens que não vemos.
E sobre a condição feminina, espécie de alvo do filme de Pabst, que nos parece algo perdida entre forças e veículos que o filme carrega, diga-se que o grande dilema da masculinidade é «como forjar essa condição sem estar do lado do desejo ou do medo que traz o incompreensível»? É nesse intervalo que parecem estar contidas algumas lições como a de ser mãe ou a de usar o cabelo longo como cortina que ora enaltece ora esconde o rosto e suas emoções. O objecto sexual, a maternidade, a beleza feminina, a estereotipada vaidade, são tudo peças brutas e psicológicas que manufacturam a distância masculino / feminino. Um discurso, aquele que cria o feminino numa redoma de uma condição específica, feito de turbações, onde ainda a caixa de Pandora, a Lolita, a Eva, a modelo tola e outras, têm proeminência discursiva.
Pensar fora desse discurso tem a grande liberdade de perceber que não há condição feminina. Nem sequer há condição. Haverá quanto muito uma vontade deliberada do masculino de se impedir de feminilizar o mundo? É que só impedindo-nos de o fazer, só mantendo a não compreensão desse mundo feminino, os homens, frágeis, podem continuar a sua luta. A luta por um ideal, inexplicável, divino. Feminino?
Nunca vi um filme de Pabst. Tenho de colmatar essa falha. Ainda assim, gostei de ler.
ResponderEliminarUm grande filme, sem contar o rosto inesquecível de Louise.
ResponderEliminarO Falcão Maltês