É fascinante que um filme tenha o poder de desabrochar o passado como se estivéssemos diante de um cristal, com mil reflexos, com um sem número de caminhos bifurcados. Como naquele célebre conto policial de 1941, de Jorge Luis Borges, intitulado precisamente, “O jardim dos caminhos que se bifurcam”. A dada altura, o seu protagonista, Yu Tsun, agente do império alemão, em Inglaterra durante a 1ª Guerra Mundial, prestes a ser capturado pelo inimigo, irá desvendar o mistério do seu avô, Ts’ui Pen, que se havia retirado da vida política para escrever um romance e construir um labirinto. Borges escreve: “foi debaixo de árvores inglesas que meditei nesse labirinto perdido: imaginei-o inviolado e perfeito no cume secreto de uma montanha, imaginei-o oculto por arrozais ou debaixo das águas, imaginei-o infinito, não já de quiosques oitavados e de caminhos em voltas, mas de rios e províncias e reinos… Pensei num labirinto de labirintos, num sinuoso labirinto crescente que abrangesse o passado e o porvir e que implicasse de algum modo os astros.”
Um pouco antes do desfecho do conto, Tsun irá descobrir que, afinal, os dois projectos do avô eram um só e que o labirinto era o livro que escrevera. Também os filmes ajudam a percorrer esses circuitos infinitos, do passado e do porvir, contornando os obstáculos do sentido das coisas. Há pouco tempo tropecei, como se me achasse, num filme dito menor de Dino Risi. Uma comédia italiana em que um pai, doidivanas, playboy, tinha uma quinta-feira de Setembro para passar com o seu filho que vivia com a mãe na Suiça. Il giovedì (1964), assim se chama o filme, tem a mesma energia explosiva que já víamos em Il sorpasso (A Ultrapassagem, 1962), com o pai Dino, o actor Walter Chiari, aqui a ter fazer um papel parecido com o que Vittorio Gassman tinha no filme anterior, e no qual arrastava o jovem Jean-Louis Trintignant pelas ruas de Roma. O filme é um road movie em que Dino vai levar Roberto (ou melhor Robertino, o seu menino) através do seu mundo de mentiras e facilidades e a fazer tudo o que quer fazer: comer gelados, andar de carrossel, ir à praia, ao cinema, comprar brinquedos, ver a avó (viva o luxo!).
O problema é que, como se esperava, o menino tem tudo e o pai não tem nada. Não tem trabalho, não tem dinheiro, não tem carro, não tem passado- serve-se do argumento de The Great Escape (A Grande Evasão, 1963) para se fingir um herói de guerra. Aliás, no início, quando o pai vem buscar o filho, espera no hall do hotel que este desça de elevador: Robertino, rico, menino cheio de alergias e salamaleques, terá de descer literal e simbolicamente do elevador social para vir ter com o pai. São as mentiras fanfarronas deste que vão guiando este filme burlesco através de uma leitura política quer face a um homem-tipo que acredita no desenrasque, quer face aos espaços urbanos de uma Roma cheia de promessas de futuro e prosperidade, mais por cumprir do que reais.
Por esta altura já devem estar a pensar que o meu pai também é mestre das manhas e das artimanhas. Nem por isso. O filme de Risi desbloqueou antes no labirinto das minhas memórias de infância e adolescência os muitos passeios de carro que fazíamos. Eu e o meu pai, mas toda a família, muitas vezes. Visitas pelo campo, piqueniques, idas a casa dos avós. Lembro-me dessa sensação de estar no carro, muitas vezes embalado pelo calor e pelo torpor das curvas. Lembro-me de ter sono, de ter sede, de estar impaciente por chegar ou por não chegar. Lembro-me de ter medo de passar ao lado dos penhascos, de dizer em voz invisível, “não vamos cair, não vamos cair”. Recordo também as conversas, as discussões, a música pimba e de ver nos olhos de Walter Chiari, como nos do meu pai, uma expectativa. Uma vontade de agradar, para que pudéssemos sentir a alegria que ele tinha, de ter um dia inteiro para desfrutar, para fazer coisas épicas e absurdas. Podia ser incitar-me a colher figos alheios ou, quando um dia, em criança, tendo eu merda até às costas, ma limpou num ribeiro, coitado.
Il giovedì é um filme bonito pois ele é uma ilha de amor honesto – o de um pai em relação a um filho – rodeado de mentiras por todo o lado. Só esse amor permanece como verdadeiro depois de caídas todas as ilusões e pretensões de um futuro mítico. Il giovedì é um filme bonito também porque ele não conta apenas a aproximação de Dino a Robertino. O filho vai dar-lhe um abraço carinhoso no fim, antes de ser levado novamente para o lado de lá: há uma cortina que se fecha, quando o menino vai jantar com a mãe e a sua fräulein suíça. Mas Risi filma simultaneamente a viagem do pai. É um filme reconciliação de um quarentão que começa a aprender os prazeres do iogurte e do compromisso com a sua companheira. No último plano do filme, vemos Chiari a subir umas enormes escadas, a caminho de casa, feliz, com o leite e o iogurte para o pequeno almoço do dia seguinte na mão. Sobe as escadas aos solavancos, como um homem-cavalo, de difícil freio, rebentando os estalinhos do miúdo. Um casal afasta-se pois é um homem/criança estranho e a câmara sobe ligeiramente para o ver subir. Ela, a câmara, sabe que tudo o que se seguirá será íngreme mas ele, Dino, subirá sempre rápido, alegre, sem pensar muito.
Esse plano em concreto liga-se bem, como espelho invertido, como oposto, ao plano final de outro filme que é também sobre viagens entre pais e filhos, desta feita de labirintos e memórias literalmente feito. O filme é Sanatorium pod Klepsydra (Sanatório de Vidro, 1973) do polaco Wojciech Has e, nesse plano final, a câmara em vez de subir, desce à terra. Fim do trajecto para um pai que entretanto morrera e de um filho que se terá tornado num revisor cego de um comboio de memórias no qual havia entrado no início. Como acontecia no conto de Borges em que se dizia que um livro-labirinto era um livro infinito, circular, em que a última página fosse idêntica à primeira. E, como em Sanatorium, um ser que vai da terra à terra, uma viagem que não termina, que se renova e bifurca em suas inúmeras possibilidades.
E, a dada altura, comecei eu a imaginar que o herói do filme de Wojciech Has era afinal Robertino, do filme de Risi – labirinto cinéfilo da memória e da imaginação – que, anos passados, vinha saber do pai, lá no cimo daquelas escadas, lá depois de ter adquirido maturidade, sabe-se lá Deus adonde. No cimo das escadas encontra-se o baixo da terra, uma circularidade em que filhos se vertem pais e assim por diante. Esta é claramente uma alucinação da cinefilia. Mas se há um sítio onde ela poderia ter lugar é a propósito deste filme-baile-sonho, coisa hipnótica, excêntrica e surreal que começa num comboio com figuras tombadas, cheias de pó, e um revisor Tiresias dizendo a Józef, o herói, que ele próprio encontrará o caminho. Caminho que começa num sanatório gótico, labiríntico, onde o tempo surge retardado e o pai ainda não morreu. Pesadelo lynchiano, séries fractais de tempos que se consomem, como em Resnais, onirismos de Fellini e aquele célebre e isolado hotel kubrikiano que, muito provavelmente, daqui sairá.
Em formato panorâmico, com planos-sequência omnipresentes, Józef irá saber do pai num sonho/pesadelo que falará de erotismo, de uma Polónia do pós-guerra ainda com forte passado anti-semita, com históricas figuras de cera sangrando e pessoas com cabeça de pássaro gigante. Has adapta aqui vários contos do escritor polaco Bruno Schulz que, ao estilo de Kafka ou Borges, parece interessado na figura do viajante solitário, vendo o mundo através de uma espiral abstracta do absurdo e do tempo multiplicando-se defronte da cronologia e linearidade.
Num brilhante ensaio de 2015, intitulado “Entranced”, o escritor Adrian Martin, analisa os últimos filmes de Alejandro Jodorowsky – La danza de la realidad (2013) e Poesía Sin Fin (Poesia Sem Fim, 2016), com os quais este Sanatório de Vidro dialoga bastante bem – à luz da ideia de transe e de psicomagia. Martin, que mantém ele próprio um diário dos seus sonhos e que sugere a cinefilia como uma espécie de transe pela qual se acede a um outro mundo e às camadas imaginativas da realidade, torna claro, com a ajuda do trabalho seminal de Lyotard dos anos 70, a relação próxima entre as operações do inconsciente e as operações cinemáticas. Um filme como o de Has não procura, como é a intenção de Jodorowsky, aproveitar essa relação para enviar, através de imagens e sons, mensagens ao inconsciente. Contudo, ele é um sonho em que o protagonista, e a câmara com ele (nós), vamos adentrando essas camadas de onirismo. Não para as interpretar, mas percebendo a mise-en-scène como operador para o “trabalho do sonho”, desenvolvido por Freud. Por outras palavras, o inconsciente não procura verbalizar, nem interpretar, procura sim as cores, as imagens, os gestos, a fantasia, os afectos.
Talvez por isso seja tentador qualificar Sanatorium pod Klepsydra como um filme difícil, um filme em que tudo passa, onde as paragens são provisórias e sem sedimento. O filho ficou a saber que o pai partia durante longas temporadas, mas o que fazia nessas ausências? Quanto tempo e quantos países e aventuras cabem numa elipse? Era um homem debochado, um comerciante ganancioso, um viajante por territórios exóticos, um apaixonado por pássaros? Talvez sim, a tudo. Talvez não, a tudo. Espreita-se por janelas, por portais, por portas muradas. Sobem-se escadas do pecado, debaixo da mesa há uma passagem secreta para a rua.
Todo o bom cinema é um sanatório. Nele viaja-se como num labirinto circular, retraçando imagens, lembranças, afectos, tesões. Pondo hipóteses: como a minha que envolvia uma escada subida por um personagem italiano nos anos 60 e que dava para uma tumba na Polónia, quase uma década depois. Agora que penso nisso, talvez fosse possível montar as imagens mentais de todos os passeios de carro que dei, até hoje, com o meu pai. Fomos a tantos lugares e sempre no mesmo sítio. É o cinema o que hoje me ajuda a pôr em movimento essa maquinaria da memória, essa montagem de viagens paternais, em que Kuleshov me surge, como anjo redentor que sempre virá em meu auxílio, ligando o amor ao passado e a alegria ao presente.
Com tanta ida,volta e reviravolta quem fica tonto é quem te lê!
ResponderEliminarCalma,homem,tudo se resolve!
Carrossel, raccord, algoritmo, insónias!
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