terça-feira, 25 de junho de 2019

Raccords do Algoritmo #15: Os ídolos são de barro, os heróis de ferro

Os heróis da nossa juventude nunca são de barro. Há neles uma força indestrutível, um ferro que vem do seu ser. Devo ter visto Rocky (1976) e First Blood (A Fúria do Herói, 1982) já na minha adolescência, aí pelos 14/15 anos. Agora que faço um exercício de memória afectiva penso naquilo que me falou à altura. Quanto ao “the italian stallion”, creio que era sobretudo a sua vontade de vencer, a sua persistência, a força que ganhava à medida em que embuchava cada vez mais golpes. Havia ali uma poesia sem auto-comiseração. Uma desfile de pancadas que fazia renascer. Já o Rambo era diferente. Um abismo de silêncio, uma força animal, longe ainda eu de poder compreender a dimensão política e patológica da personagem de Stallone. Mas o quê a relacionar os dois? Algo em comum? A minha resposta é esta: Rambo e Rocky são personagens do silêncio, de uma eloquência do corpo.



Talvez por isso – mas também devido a um certo receio do que iria encontrar – nunca tentei, durante estes anos todos, ouvir Sylvester Stallone, o actor, o homem de carne e osso (e metal). Fiz mal. Este ano deu uma masterclass em Cannes. Quase uma hora e meia. Botas de cabedal, camisa à lenhador, veias como tubos, olheiras, cicatrizes, mas sobretudo… histórias. Não as histórias que se contam como anedotas para excitar a libido cinéfila (como aquela vez em que Dolph Lundgren o pôs mesmo KO na rodagem de Rocky IV (1985) e foi levado de avião, de emergência para o hospital, onde passou quatro dias nos cuidados intensivos com os médicos a pensar que tinha sofrido um acidente de automóvel). Falo de histórias de uma vida de luta real em que o seu corpo foi sendo o instrumento do seu discurso, falo das palavras com que sabiamente articula o aproveitamento político que fizeram das suas personagens.

Comove-me às lágrimas perceber hoje que, tantos anos depois, Sly é de facto Rocky e Rambo. Há nele a mesma humildade, a mesma resiliência, a mesma atenção aos detalhes da vida do ser humano. Stallone é um homem comum, meio desfeito na sua carne, mas de um integralidade intacta. Um homem que percebe que a melhor maneira de comunicar através do cinema é escutar e estar ao nível daqueles que têm medo, que sofrem, que são derrubados pela realidade uma e outra vez e e que uma e outra vez se levantam. E esse prolongamento entre a vida real e a vida ficcional é bem visível na forma como o actor/realizador vai recuperando as suas personagens à medida que vão envelhecendo, ganhando experiência, e na forma como as recusa deixar morrer. Atrevo-me a dizer que os corpos de Rocky e Rambo só tombarão quando o de Stalonne não puder mais. Que outra coisa faz o cinema senão mostrar como um corpo pode ir falando ao longo dos tempos? Desde o seu delinear inicial e juventude até não conseguir articular mais nada.


Façamos um desses desvios absurdos e produtivos. Numa recente conferência na FCSH de Lisboa, Boaventura de Sousa Santos, especialista em ciências sociais humanas e um dos grandes pensadores portugueses da emancipação social, falava da importância de refundar, descolonizar, o pensamento, as epistemologias, a universidade, enfim, o conhecimento. Descolonizar, é bem evidente, por relação a uma perspectiva histórico-imobilizante de cariz eurocêntrico, de um espaço colonizador em torno de núcleos como o capital, o patriarcado, ou o domínio racial. E dizia ele que, independentemente da vontade de transformação, o conhecimento “muda” sobretudo fora da teoria, na luta, no encontro com o outro, no corpo a corpo, na tentativa de diálogo e de encontrar termos discursivos consensuais.

Jackie Chan e Stallone seriam os dois bons exemplos do que configuraria esse conhecimento in motion. Não por uma noção literal de luta. (Talvez simbólica, tal não me pareceria descabido). Mas onde quero chegar pode ser melhor ilustrado no dilema da personagem de Chan num dos seus filmes pré-Hollywood mais conhecidos. Falo da comédia de kung fu, Zui quan (O Grande Mestre dos Lutadores, 1978), do realizador de Hong Kong, Yuen Woo-ping. A personagem de Jackie Chan é a de um jovem inconsequente e fanfarrão: mete-se com as meninas para receber um beijinho, parte os braços e as pernas a um desordeiro, filho de um manda chuva da aldeia. Isto até que o pai resolve mandar chamar um tio dele para o pôr na linha. Trata-se de So Chan ou Beggar So (o Drunken Master do título inglês), figura da folclore popular da época imperial chinesa. A sua característica é dominar um estilo secreto de artes marciais, praticado sob a influência do álcool.

Todos estes ingredientes convocam a comédia física, a câmara de Woo-ping, com os seus nervosos zooms e tilts, salienta as estaladas e acrobacias, os efeitos sonoros exagerados das pancadas; e há ainda os dentes postiços das personagens xoninhas, os sinais cabeludos, um cabeça de martelo, as ininterruptas cenas de luta e desafio. Em todo este cenário de “brincadeira” o que está em causa é um rito de crescimento da personagem de Jackie Chan. A eloquência das suas palavras é nula, ninguém o leva a sério, toda a gente o trata como uma criança. E é só quando, numa das ocasiões de humilhação lhe queimam as calças, que Chan passa a deixar de ser obrigado a tornar-se adulto para o querer fazer de livre vontade. Este tornar-se adulto pressupõe uma conversão das palavras em linguagem corporal. Não é por acaso que as cenas em que este está a ser treinado por Beggar So, as máquinas de treino mais parecem máquinas medievais de tortura. Na luta com o corpo, treina-se a precisão, o controlo, a perfeição. Como diz aquela personagem de um dos romances de James Baldwin ao aperceber-se que tem um corpo, “viverás com isso para sempre, e isso vai soletrar a linguagem da tua vida.”

Basta ver aquele segmento muito simples em que o jovem herói interpreta – dança – cada uma das posições de kung fu dos oito imortais bêbados para mudar a percepção que temos de um actor como Jackie Chan. A partir daqui toda a comédia (mesmo a mais desbragada que virá depois nos Estados-Unidos) se torna coisa séria. Uma performance de linguagem corporal, de conhecimento feito na tal “luta”, de um corpo eloquente ao nível dos melhores poetas e mestres da literatura. E essa “descolonização da palavra pelo corpo”, questão tão premente no cinema – e que vai do slapstick ao corpo a corpo com o teatro, a música, a literatura das obras de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, por exemplo – tem em Zui quan essa demonstração evidente. É quando os grandes lutadores devêm figuras grotescas, cambaleantes e bêbadas, o tal drunk kung fu, que se tornam mais letais. Mais letais e eficazes porque mais difíceis de catalogar e prever.

Pegar nos heróis de Stallone ou nos de Chan e procurar um significado oculto além desta mensagem do ferro e do músculo é sempre possível. Quiça, talvez um aprés coup frágil, recolonizado. Para voltar à dupla dos criadores de Moses und Aron (Moisés e Aarão, 1975), Straub dizia que não devíamos fazer filmes com uma dada significação em mente, sob pena de se fazerem apenas porcarias, sob pena do seu “significado” “confortar as pessoas nos seus clichés”. É, no fundo, o mesmo problema de Moises, nesse referido filme de 75 que adapta a opera incompleta de Arnold Schönberg, mas aqui trazido para a criação artística. Moises pede a ajuda de Abraccccão pois falta-lhe o poder da palavra, da oratória, para significar uma “salvação”, para conduzir o povo de Israel para lá do jugo egípcio. Os milagres serão o truque da visibilidade e do “corpo” mas que dão lugar às falsas imagens e adorações, mal a ausência do visível se instala.



O trabalho de Straub e Huillet, mais do que veicular uma certa “visibilidade” da música da partitura de Schönberg, foi a de fazer circular as suas palavras num novo corpo. Um corpo cinemático, feito de décors desérticos (no fundo, novas arenas de luta), de cortes entre notas, de movimentos de câmara que não impedissem o fluir da imaginação. Um corpo ainda feito de corpos declamantes, em coro, dançantes. Um corpo cinemático em que, como escreveu o programador António Rodrigues, a propósito do cinema da dupla franco-alemã: “cada plano é pleno”.

No fundo, a história da nossa imaginação é a história da precisão e do controlo dos corpos. O cinema mostrou-nos isso e é esse domínio absoluto o que une Stallone, Chan, os Straub e tantos outros. Só que, no caso do primeiro, não era um corpo trabalhado à exaustão, muito menos um corpo evocador. Era apenas um corpo que tentava dominar uma raiva descontrolada, um corpo que falhava e falhava e voltava a dobrar e parecia que desmoronava, mas depois renascia e reconstruía. E é por isso que os heróis, sobretudo os da nossa juventude, só podem ser de ferro.

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