quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Last Flag Flying de Richard Linklater


Começo com um pormenor: esta imagem corresponde a um breve plano de passagem no qual o corpo do jovem soldado Larry, morto no Iraque, é colocado a bordo de um comboio a caminho de Portsmouth para ser enterrado junto da mãe.  Esse é o desejo do pai, o ex-marine Larry Shepard (Steve Carell), contrariando os protocolos militares que preparavam um funeral com honras de estado no solo sagrado de Arlington, em cemitério destinado aos grandes heróis da nação. No plano, o caixão está dentro do comboio - não o vemos, ainda - e apenas assistimos aos gestos muito lentos e coreografados dos oficiais fazendo continência ao corpo (despedindo-se). Ao mesmo tempo que as mãos sobem mecânicamente até aos sobrolhos ouvimos os resfolegares próprios dos comboios parados nas estações. Nesse instante, Linklater aprofunda uma ideia que já tinha deixado entrevista: a instituição militar norte-americana como uma espécie de impotente animal mecanizado, cansado, lento, torpe pelo peso das suas convenções. Ou por aquilo que Linklater chama de "lubrificante social", ou "little white lies", que fazem a sociedade girar.

 Last Flag Flying (Derradeira Viagem, 2017) tem essa roupagem de comentário social - fala-se das mentiras militares, da hipocrisia dos políticos, do desespero movido a álcool, sexo e drogas dos soldados de um Iraque como repetição de um Vietname. Tem aliás a dada altura, um esqueleto simbólico que coloca em cada um dos ombros da personagem de Carrel os seus amigos e companheiros de travessia, um diabinho e um anjinho ex-militares a sugerirem-lhe o que há-de fazer. O primeiro nunca casou, tem um bar onde se embebeda diariamente e quer viver o presente a toda a velocidade, pisando tudo o que o afaste da dureza da verdade. O segundo é um ex-drogado-alcoólico-agora-padre, preferindo os confortos da espiritualidade. Linklater vai filmar a viagem dos três amigos, com o caixão do filho do primeiro - uma espécie de inverso de 3 Godfathers (Os 3 padrinhos, 1948) de John Ford - e aproximar-se daquilo que faz de Linklater um bom cineasta. O interesse por filmar encontros de pessoas que viveram algo em comum no passado, encontros nos quais a passagem do tempo se funde num misto de nostalgia e até anacronismo. Boyhood (Boyhood: Momentos de Uma Vida, 2014) e a passagem do tempo, a sua before trilogy, falam disso, mas também o último dia de escola de Dazed and Confused (Juventude Inconsciente, 1993) , ou o retorno aos anos 80 e à entrada na idade adulta de Everybody Wants Some!! (Todos Querem o Mesmo, 2016). Talvez por isso, agora, a personagem do anjinho (Laurence Fishburne), que quer constantemente partir mas que vai sempre acabando por ficar, se torne tão exemplificativa do sentimento do universo linklateriano. Uma lucidez que quer fazer avançar, mas uma nostalgia que vai permanecendo... Como esta viagem dos três amigos que, apesar de derradeira, se vai saboreando aos poucos, como se fosse interminável. Não por acaso os langorosos planos de comboio, não por acaso as peripécias que vão adiando o fim, a meta, desta travessia de amizade e da memória. E quando lá chegamos é como se nunca tivéssemos partido. São essas as alegrias (mas também as penas) da memória.

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