quarta-feira, 29 de outubro de 2014

The Ghost of Mr. Bénard


Ainda que eu ache que a expressão "cinéfilo priapismo post-mortem ad aeternum" resuma exemplarmente, em jeito de insulto elogioso ou elogio insultuoso, aquilo que Manuel Mozos conseguiu pela memória de João Bénard da Costa, há duas ou três coisas que eu sei dela (da memória) que não me deixam que JOÃO BÉNARD DA COSTA - OS OUTROS AMARÃO AS COISAS QUE EU AMEI vá pelo ralo do meu subconsciente sem antes vir, pelo menos uma vez, à tona. 


O último texto que Roland Barthes escreveu tinha esse título incrível "Falhamos Sempre Quando Falamos do que Amamos". Essa proximidade excessiva ao ponto da (con)fusão com o objecto amado, tolda a visão, empena a caneta, emperra a câmara ou o pincel, em detrimento de um elogio sem freio. Contudo, na arte como na vida nada almeja à pura objectividade, nada obriga a separar a ideia do sentimento, a convicção de uma pretensa originalidade. Também com a escrita de João Bénard da Costa as coisas assim se passavam nesses reinos da paixão analítica, da visão que nunca separava o facto do fado.
 
Essa escrita, em torno da qual gravitam os filmes da vida dele, claro, já chamava a gritar as imagens para com elas fazer uma ilha com um filme à volta, feita de águas perigosas infestadas de frases mortíferas e adjectivos impossíveis. Mas o filme de Manuel Mozos não faz dessa gravitação o seu amor. Pelo contrário. O seu amor, a sua voz, está, parece-me, na acto predatório da selecção, da montagem, que nela procura sacrificar a completa religiosidade do acto de amar loucamente (e de fazer um elogio agónico) em prol de um pessoa que importa reconstituir pelos seus olhos. Que disse ele, que escreveu ele, que viu ele quando me estava era a ver a mim? Essa escolha, mais do que escolher a pose com que Bénard vai aparecer na fotografia da eternidade, vem dar uma visão de fantasma àquele a quem o cinema por estas bandas pertenceu, pertence e pertencerá. Todos as pequeninas senhoras Muir aí escondidas por vir, que se sentarem nas salas escuras a ver o que ele dava a ver, darão de caras, mais tarde ou mais cedo, com esse fantasma. 

Não me pergunto quem amará o que ele amou pois, por mais religiosa que seja a experiência do cinéfilo, a metáfora crística impede-me de comparar amores ou traçar cartilhas para eles. O que me deixa inquieto, e é esse o meu priapismo privado, é: o que fazer deste fantasma, desta ausência que não está apenas neste filme, está em todos os filmes. Essa presença-trauma para o espectador, para o cinéfilo, quem no-la trouxe para o reino dos imagens-espelho foi Manuel Mozos. E é essa vinda a narrativa escondida do seu filme.



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