quinta-feira, 18 de julho de 2019

Her Smell (Her Smell – A Música nas Veias, 2018) de Alex Ross Perry

Em Abril de 2012, numa sessão do IndieLisboa vi The Color Wheel (2011), segunda longa do nova iorquino Alex Ross Perry, e recordo-me de ter pensado numa obra ainda a tactear um espaço pessoal. O preto e branco granuloso nos seus 16 mm, a desconstrução da comédia romântica, a dimensão pseudo-autobiográfica, os planos irrequietos como no meio da improvisação. Lembro-me de ter pensado demasiadas vezes em John Cassavetes. Mas tudo isto era normal, it’s part of the game. Em 2014, Listen Up Philip (2014) fez-me pensar demasiadas vezes em Woody Allen, um escritor emulando o seu pessimismo, as suas neuroses trágico-cómicas. Entretanto, havia mais referências possíveis: Noah Baumbach, os irmãos Safdie, e, com um bocadinho de imaginação mas tirando a regra e o esquadro, os primeiros Wes Andersons.

Mas como o tempo passou e havia nas obras de Perry esta vontade de pertencer a um imaginário já feito, perdi um pouco o interesse. Deixei passar Queen of Earth (2015) (pelo que leio um dos seus filmes mais minimais e conseguidos) e Golden Exits (2017). Ross regressa em 2018 com este Her Smell (Her Smell – A Música nas Veias, 2018) e um conjunto de habitués no seu cinema: desde logo o aqui montador, mas também produtor e realizador Robert Greene, o director de fotografia Sean Price Williams [que parece aqui ter continuado o louco, berrante e barroco das cores do incrível Good Time (2017) dos irmãos Safdie] e a maravilhosa actriz Elizabeth Moss que aqui é um monstro de decadência, um “naufrágio de mulher”, como se pode ler neste texto de David Ehrlich.

Com um orçamento um pouco maior do que é costume, Her Smell é suposto ser um vai ou racha para o cineasta. Perry escreveu longos (quase) monólogos desesperados para uma rock star em queda livre. As drogas, mais visíveis nos seus efeitos do que na sua presença, mas também este sentimento de envelhecimento, de has been. A dada altura, a cantora Becky Something, é esse o seu nome artístico, num momento de prece quase lúcida, pede: Cause this is it for old Beckster. Last train is leaving the station, and if I’m not on it then the whistle blows, that’s it for me. Lights out, last call, soup’s cold, ice cream’s melting. Beer’s warm. Yuck. Let’s rally… One more time. Perry inspirou-se na queda de Axl Rose, mas podia bem ser Courtney Love e já que pensamos neste memory lane não há como não evocar o brilho ofuscado de Norma Desmond. Ou nessa solidão mental e evocadora de Gena Rowlands em A Woman Under the Influence (Uma Mulher Sob Influência, 1974).

E nem por acaso paramos novamente em Cassavetes. A primeira metade do filme é um conjunto de longas cenas em espaços fechados – o backstage de um concerto, o estúdio, os diferentes camarins – e a câmara sacode-se por entre conversas tresloucadas, frases ressentidas, enquadramentos de olheiras, suores e borbulhas, fumos de bruxaria, quedas. Um show verdadeiro na sua orgiástica pulsão de drogas e sentimentos mal resolvidos, bem menos ensaiado no que o show oficial. Mas mais ou menos. Se é verdade que Ross Perry não larga a aura cassavetiana, não é menos verdade que tudo aquilo é menos improvisado do que se pensa. Moss disse mesmo que poucas frases que disse Becky não estavam já no papel e que as linhas de diálogo foram do mais difícil que teve de decorar até hoje. O que nos deixa neste limbo novamente: como se a maldição do cinema do realizador nova iorquino fosse a vontade de casar, à força, a escrita meticulosa de Woody Allen e a “falsa” liberdade cassavetiana. Nó górdio que transporta Her Smell para uma terra, não de ninguém, mas de um defraudamento constante: parece Shakespeare mas talvez seja apenas Gaspar Noé; parece um bailado sokuroviano mas é tanto o desejo redentor de um final (quase) feliz.

A segunda parte do filme não é vermelha nem mexida, é branca e estática. Reabilitação da personagem e do cineasta que regressa ao espaço do “terror” punk sem pulsão, um espaço transfigurado e à mercê para uma nova resolução. Ross filma então um inferno sem chamas, uma estranheza de um lugar onde, por entre espasmos, se falou de coisas importantes: ciúmes, egocentrismo, divórcio, relação mãe/filha, responsabilidade parental, ética profissional. Contudo, talvez fosse já tarde demais. Ross continua entalado entre o dionisíaco e a apolíneo: seja quando se regozija no excesso e no espectáculo da decadência do primeiro, seja quando parece procurar a mudança para o segundo, pois aí reside a redenção narrativa que continua a ser exibida como display técnico.

Dito de forma curta e grossa: vemos a manipulação no cinema de Alex Ross Perry. Seja na sua dimensão técnica, seja na sua dimensão dramática. Tudo é palco e palavra para a ideia. E quando assim é… não há embriaguez que nos valha. Podemos fingir-nos bêbados mas ainda vamos ser nós a levar o carro do nosso amigo para casa.

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