quinta-feira, 23 de maio de 2019

"O Mar Enrola na Areia" de Catarina Mourão


A nossa memória crê-mo-la drama intenso, romance mítico, filme de acção, mas quase sempre nos enganamos. A memória é filme experimental, faca de dois gumes, com a banda som e a banda imagem entre aquilo que achámos que era e que poderia ser; entre o que foi e o que filmámos com a nossa percepção; a percepção-película cujo tempo vai desgastando o registado; o grão a entrar nas histórias, a areia a enrolar-se no mar ou era o contrário…? Catarina Mourão quando fazia o seu filme anterior, A Toca do Lobo (2015), encontrou num filme familiar uns segundos de uma figura conhecida das praias portuguesas nos anos 50. Uma lembrança de um homem conhecido como “Catitinha” que vinha junto das crianças brincar com elas, contar-lhes histórias. Ninguém sabia muito bem quem era, de onde vinha, uns diziam que tinha perdido um filho num acidente e enlouquecera.
A partir daqui e com recurso a vários filmes balneares da época, Catarina expande, distorce, contamina, efabula essa memória de infância. Estamos de volta às praias de “crianças chilreantes” e “epidermes tostadas”, lado a lado com barraquinhas “invisíveis” e fechadas onde as freiras se banhavam nuas ao sol, as praias dos banhos compulsórios das crianças, dos rebanhos de meninos e meninas nas sestas obrigatórias. Estamos no tempo do cinema mudo com cartões que evocam um tempo e uma açcão (neste caso, uma memória), ao mesmo tempo que no gesto do arrêt sur l’archive. Idílio familiar e experimentalismo visual. Do lado de lá de cada memória inocente, esconde-se, latente, uma possibilidade perversa. A versão oficial dos arquivos de filmes familiares, oficiais, amadores, quando apanhados pelo gesto da manipulação sobre esse mesmo arquivo (o digital fez explodir esse gesto, mas daquele não é exclusivo, evidentemente) especulam sobre o que não é dado a ver: um apito aterrorizador, um toque no sítio errado, uma versão oficial e cândida dos tempos de relaxamento e férias, problematizada pelo poder ambíguo do cinema. Tudo isto trabalha e dá a ver este excelente filme de Catarina Mourão.

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