O realizador tem que rezar pela câmara para ela não queimar.
Genito Gomes
Vivemos tempos entusiasmantes. O cinema enche os pulmões de ar e deixa entrar toda uma outra vida que lhe estava outrora vedada. É o tempo de inverter os contra-campos, de os habitar por todos os lados, todas as partes. De ver e escutar as imagens e os sons daqueles que, como Genito Gomes — da liderança indígena Guarani Kaiowá e hoje cineasta — pedem por uma câmara de filmar e que, quanto esta lhe chega, rezam para ela não lhe queime nos dedos. É o momento de superar o que poderia ser o espaço do paradoxo. Como se pôde ver num outro filme desta Mostra Ameríndia, Já Me Transformei em Imagem (2008) de Zezinho Yube, poderíamos pensar nesse contra-senso de uma "prisão" em imagem, com todos os seus caminhos institucionais, para um exercício que se queria de libertação. Mas nada seria mais errado, pois este é o tempo de entrar no cinema, mas para procurar mudar o cinema. Para fazer das torres-árvores, para caçar imagens, experimentar a partir do coração da terra.
Mas vale a pena começar por explicar esse pedido de Genito. Num processo de recuperação das terras do povo Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, na fronteira com o Paraguai, o pai de Genito, Nísio Gomes foi assassinado. É neste contexto de luta e morte que Genito perguntou ao antropólogo Tonico Benites, que tinha acompanhando o povo todos estes anos, como é que uma câmara poderia chegar às mãos da comunidade. Podemos dizer então que Ava Yvy Vera (A Terra do Povo do Raio, 2016) começa por ser um filme-íman. Um filme que nasce da invocação primordial do cinema que chega virgem à comunidade, no contexto de um conjunto de oficinas de filmagem e montagem, como extensão do programa Canto Palavra Território da Universidade Federal de Minas Gerais. Esse "poder de atracção", de uma câmara que vem parar às mãos de uma comunidade, gera nela um peso, uma solenidade própria de um ritual novo que traz com ele uma responsabilidade. Mas o mais belo nessa capacidade de receber uma “jóia” que pode cortar o real em pedaços é que ela vai para lá da “mera” obrigação de uma certa antropologização do olhar e do cinema. Ela convoca uma sensibilidade artística global.
Já não é uma questão, portanto, de disparar a câmara como (apenas) arma de resistência ou de sensibilização para um problema político. Trata-se de um genuíno gesto de empoderamento. Um gesto que visa, tão somente, diversificar os gestos. Que procura, no fundo, encontrar múltiplas formas de fazer cinema. Não é por acaso que Ava Yvy Vera é um extraordinário exemplo de cinema colaborativo. Assinado por oito pessoas: Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Jhonn Nara Gomes, Jhonaton Gomes, Edina Ximenes, Dulcídio Gomes, Sarah Brites, Joilson Brites. E também não é um acaso que tudo tenha começado pela reunião de vários espaços e pessoas da comunidade: a escola, o interior das casas, as refeições, a roça, a casa de reza, os novos, os velhos. O que fazer agora com essa câmara que lhes queimava nos dedos? Como conta Genito em algumas entrevistas acerca da realização Ava Yvy Vera, todos passaram as suas ideias para o filme, todos começaram a caçar imagens. Um caso de inteligência colectiva em funcionamento, um objectivo de mostrar como vive o seu povo, uma ideia de transmissão que não é só um alerta de consciências. Havia que “ouvir os nossos velhos”, dizia o cacique, “perguntar-lhes como viviam”. A câmara servia essa passagem de testemunho, para fora, para engrossar a visibilidade da causa indígena, mas também para dentro, para que os novos soubessem a sua história, os seus modos de vida, bebidas, comidas, rezas, cosmovisões.
E assim tomam formas diversas este poder da criação. Mas não é isso exactamente o que traz o poder? O poder de ser várias coisas ao mesmo tempo? Ava Yvy Vera, em menos de uma hora, é esse caleidoscópio de registos que vão desde o racconto mágico, à documentação dos pequenos gestos do quotidiano, passando pelo tradicional momento de “dar voz a”, pelo reenactment de episódios de ataque e sofrimento às mãos dos karaí (os brancos), pela evocação da memória de Nísio Gomes e mesmo à procura dos relâmpagos que eles rezaram para que viessem. Para que se pudesse, no fundo, fazer o filme e “mostrar aos outros como é a realidade do indígena”. Mais uma vez as palavras são de Genito. E em cada recanto desta obra-coletiva — que, no seu propósito, ganha um sentido de coerência superior à mera soma das partes — vamos revendo velhos conhecidos do cinema. Na já referida árvore-antena do início há um pouco de Kiarostami, nos restos de arroz raspados do tacho de mais uma refeição encontramos a omnipresença de Wang Bing. E há Rouch nos cerimoniais, Oppenheimer nos momentos de encenação do passado, Reygadas na procura do brilho da noite. Se em cada recanto todos estes cineastas “saltam” da mão destes oito realizadores de Ava Yvy Vera, só se torna mais evidente que em cada campo há um contra campo por filmar. Um contra-campo que brilha com ainda maior intensidade, que de um filme-íman podemos passar a um filme-sonho. E é por isso que entusiasmantes são os tempos em que vivemos. E filmamos.
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Ava Yvy Vera (A Terra do Povo do Raio, 2016) vai ser exibido no dia 17 de Março, Domingo, pelas 19:00 na Sala Polivalente no Museu Calouste Gulbenkian, acompanhado de outros dois filmes: Eju Orendive e Ivy Reñoi, Sementes da Terra. Esta sessão faz parte da Mostra Ameríndia: Percursos do Cinema Indígena no Brasil, que decorre de 13 a 17 de Março no Museu Calouste Gulbenkian, numa co-organização Apordoc e centros de investigação CHAM, CRIA, ICS, IHA, e Museu Calouste Gulbenkian.
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