domingo, 23 de julho de 2017

Árvore da Cinefilia #15- Vasco Câmara

Terei cuidado para isto não ser um “cinema paraíso”, mas é verdade que os filmes começaram por me chegar de carrinha. O altifalante começava a anunciar o espectáculo pela manhã à entrada da vila, e a realidade era alterada. À noite o ecrã era içado no bazar. Os mosquitos eram dali. Já as cadeiras — de praia — tinham os espectadores que as levar: miúdos sentados à frente, mães atrás, pais ainda mais na retaguarda e de pé (este não compromisso total com o espectáculo devia ser sinal de autoridade).




Isto foi nos anos 70, à beira do Índico, entre o mar e a selva, na moçambicana província da Zambézia.

Há ainda filmes que hoje secretamente me murmuram que já os tinha visto — não porque reconheça sequências, é subterrâneo. A periodicidade do cinema ambulante era incerta, isso tornava o acontecimento mais violento. É impossível saber exactamente o que vi e de que actualidade cinematográfica estou a falar — estávamos perdidos no “mato”, sem tempo. Mas sei que fui exposto.

“Ben-Hur” será sempre um filme “pesado”, porque, quando hoje dou de caras com Charlton Heston na arena, sinto ainda o aperto dos sapatinhos novos de verniz — uma forma muito sensorial de experimentar o “academismo”. “Django”, antes de ser um “filme de culto” realizado por Sergio Corbucci, antes de ser western spaghetti (só anos depois identificaria essa terminologia e identificaria Franco Nero), foi uma vaga de onomatopeias: eram assim recebidas as cowboiadas, os espectadores incentivavam, ajudavam, durante os murros; um western era um concerto de estádio.

Há filmes que nunca vi no bazar porque o senhor do cinema ambulante nunca cumpriu as promessas, apesar de vários pedidos. Por isso se tornaram míticos (até se desvanecerem ao tardio primeiro encontro): por exemplo, "Música no Coração".

Mas há um filme que vi e que nunca esqueci, apesar de ter esquecido o título daquilo que tinha visto e ter andado anos à procura de um reencontro. A experiência tinha sido devastadora, percebi sempre. As ondas de choque reverberaram pela adolescência. Mesmo quando parecia que tudo se tinha desvanecido na memória, a “cena da árvore” ressurgia.

“A cena da árvore”, era assim que eu falava com a impressão desse filme em mim: dois miúdos, dois irmãos, órfãos de mãe, uma solidão dourada; no triste abandono dos privilegiados, nas brincadeiras, um testou os limites de um ramo de árvore, que cedeu, caiu sobre as rochas de um riacho, a coluna vertebral danificou-se, o menino ficou imobilizado (depois acontece o que acontece nos finais lancinantes.)

Esse fim era apenas o culminar da odisseia de angústia que foi essa noite no cinema. Através da história de dois órfãos com o mundo abalroado pela morte da mãe, um filme escancarou (os meus) medos. Esse filme foi, é, “Incompreso” (1966), de Luigi Comencini. Levei anos a identificar o título, na altura em que comecei a saber quem era Comencini. Levei mais alguns a reencontrar o filme — um amigo sacou-o da Net e mandou-mo. Ainda hoje não tenho “Incompreso” na colecção de edições oficiais da obra de um cineasta muitas vezes aparentemente ligeiro, mas profundamente melancólico e mais difícil de “arrumar” do que Dino Risi ou Mario Monicelli, colegas da chamada “comédia à italiana” — que em si já foi um território de confusão de géneros. Quando o reencontrei, vi que continuava tudo em “Incompreso”, como na primeira vez. Mas agora sei que Comencini realizou comédias e melodramas (e melodramas sociais, “Delitto d’amore”, de 1974, é sublime...), agora sei que Comencini é sempre justo perto da infância — mesmo nos filmes em que as crianças estão em background — e que “Incompreso” e os esplêndidos, esplêndidos, “Infanzia, vocazione e prime esperienze di Giacomo Casanova, veneziano” (1969) e “Le avventure di Pinocchio” (1972), adaptação da história de Carlo Collodi sobre o boneco de madeira esculpido a partir de um tronco de árvore que sonha em ser um miúdo de verdade, são angustiantes experiências sobre a descoberta, sobre a vida, as prisões que nos confortam e a liberdade que se apresenta e nos paralisa. São também aventuras de invenção cenográfica, de um fulgurante “artesanato”  — em “Le avventure di Pinocchio”, por exemplo, um cenário naturalista alberga e constrói a fábula.


Estou a ver-me naquela noite de mosquitos no bazar de Pebane (era o nome da terra): hoje sei que naquela sala — negros sentados no chão à frente, depois os meninos brancos nas cadeiras e o resto da sociedade colonial local —, e tal como na casa familiar de “Incompreso” que Comencini filma como um túmulo (é um filme com peso “viscontiano”), viviam-se os últimos dias de um mundo.

Vasco Câmara *

*Crítico de cinema no jornal "O Público" e editor do suplemento "Ípsilon".


Para saber mais sobre a rubrica Árvore da Cinefilia.
Edições anteriores: #1 Francisco Rocha.
                                    #2 Pedro Correia.
                                    #3 Carlos Alberto Carrilho
                                    #4 Álvaro Martins
                                    #5 Leandro Schonfelder
                                    #6 Samuel Andrade
                                    #7 Vítor Ribeiro
                                    #8 José Marmeleira
                                    #9 Maria João Madeira
                                    #10 João Lisboa 
                                    # 11 Ricardo Vieira Lisboa 
                                    # 12 Daniel Curval
                                    # 13 Inês N. Lourenço
                                    # 14 Alexandre Andrade

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