sábado, 29 de abril de 2017

Spellbound - Alfred Hitchcock


Período de guerra, tudo meio maluco da cabeça, sonhos por controlar, desejos reprimidos, venha a imposição de um certa ordem, as lembranças no lugar correcto, nem que seja por via da psicanálise. «Spellbound» sofre desse «mal», do dispositivo freudiano que decretava, do alto da sua autoridade, um furioso sistema hermenêutico na desordem das paixões e do inconsciente. Só que aqui havia um mar de distância entre o produtor David O. Selznick e Alfred Hitchcock. Não só porque à data do início do projecto este estava em Londres e o primeiro em Hollywood, mas sobretudo porque este queria usar os "ditos" de Freud na adaptação do romance «The House of Dr. Edwardes» como um mecanismo explicador e sobretudo agregador do par amoroso Bergman-Peck. Já Hitch percebera que «there are no lions in the scottish highlands», ou seja, que quando a psicanálise começava a ditar isso era macGuffin - como o comprova o mais chato de «Spellbound», o seu argumento explicativo e a forma  intrincada pela qual sabemos a verdadeira identidade e motivações da personagem de Gregory PeckMas o filme não é sobre isso e aqui está finalmente o que o separava do produtor da Selznick International: a psicanálise era uma porta de entrada no potencial libertador da imagem. Assim, como o plano das portas que se abrem sucessivamente, com o beijo entre a reprimida Dr. Constance Petersen  e o falso Dr. Edwardes, também «Spellbound» aproveita esse potencial libertador. É não só a sequência desordenadora, por entre a qual entra ar ao filme, dos sonhos desenhados por Dalí, mas também a inversão da lógica entre a imagem como algo que deve explicar ou complicar o consciente. O espectador "queria" ver os sonhos para perceber a personagem de Peck - isto é, as imagens dos acidentes, dos slopes, das conversas lógicas e intermináveis com o Dr. Brulov - mas Hitchcock usava essa «distracção» para complicar pela imagem. Os já referidos planos das portas, a mão gigante (visivelmente de madeira) a dobrar do ponto de vista do culpado ao da vítima, a cena inicial da mulher patologicamente sedutora são tudo os indícios de uma mise-en-scène paralela que revela os sonhos e indícios do que há verdadeiramente a explicar em «Spellbound»: o desejo sexual de Ingrid Bergman e, por extensão, do homem que olha e desejava todas as mulheres sem as tocar. São as imagens sempre essas que nos introduzem aos caminhos de um desejo trancado e que, sem explicações verbais, nos mostram como esse desejo se destrancou. Pelo meio ficaram umas mortes e um mistério vazio resolvido pela táctica «misteriosa» com que em Hollywood se vendiam os «aléms de bolso» da psicanálise.

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