sexta-feira, 19 de junho de 2015

Já tenho água quente


Não sei o que é que vocês acham, mas eu por mim considero extremamente desinteressante empunhar um chuveiro sobre a nuca e de lá apenas sair água gelada. Se muita gente se indigna pelo povo indiano não usar sanita, eu posso muito bem achar que um esquentador avariado é um retrocesso civilizacional dos piores que há. Se é bem verdade que estão trinta graus e há ovos estrelados a serem confeccionados em muitas esquinas de Lisboa, não é menos verdade que nem todos os odores corporais saem à primeira sem água morninha. Génios como sois já deveis ter chegado à conclusão de que o meu Vulcano faleceu há um par de dias e que não tenho portanto visto muita utilidade em mudar de cuecas desde aí. Assim sendo, contratei um técnico de esquentadores que num ápice se prontificou a dignificar-me com a sua visita. Este senhor de cabelo à escovinha, uns cinquenta anos e t-shirt da Remax (devia ser emprestada) entrou-me pela porta adentro e perguntou-me logo o que se passava. Depois de lhe ter relatado a minha aflição, nomeadamente por não conseguir ouvir o meu esquentador a fazer o "clic clic" que ele faz quando trabalha bem, o senhor olhou-me nos olhos, com pesar, e disse-me "isso não é nada bom". Tradução: "vou-te levar pelos menos 3 notas de cinquenta euros." Esqueci-me de dizer que trazia um aprendiz, um jovem dos seus 20 anos, com uma t-shirt que não era da Remax (o que achei logo muito estranho) a quem lhe pediu de pronto uma faca. Eu, habituado a estes cenários, trouxe-lhe um banco e meti à cautela no bolso dos calções o telemóvel, caso algo desse para o torto. O senhor munido de uma lanterninha e da faca desmontou-me a caixa do aparelho e pediu ao aprendiz de técnico de esquentadores para abrir a água quente enquanto carregava nos botões todos. Nada. Voltou a olhar para mim com uma expressão funesta e repetiu, desta vez com um tom de 4 notas de cinquenta euros, "isto não está nada bem". Desceu do banquinho, pensativo, e pediu ao miúdo fita cola. Cortou um pedaço com os dentes, encaixou lá num ponto G qualquer do esquentador e subitamente sorriu muito. Abra lá a água. Eu abri a torneira, e não é que que começámos logo a ouvir o "clic clic" habitual, ao qual se seguiu um jacto de água própria para banho e louça? Com lágrimas a quererem começar-me a correr pela cara abaixo felicitei-o, "ah, muito bem", e perguntei-lhe logo o que tinha sido afinal. Ele encara-me muito sério, com um olhar que muito provavelmente nunca mais irei esquecer (para meu mal), e diz-me todo fanfarrão: "isto, quem sabe..." E mais nada. Silêncio. Nesse momento, podia jurar que comecei a chorar sem ser da minha habitual febre dos fenos. E fi-lo, sabem vocês, porque? Não porque poderia banhar-me alegremente dentro de breves minutos mas sim porque aquele tom, aquela fanfarronice, me fez recordar Jorge Jesus. Sim, Jorge Jesus foi para o Sporting e nunca mais poderei ouvir com carinho frases destas. Escusado será dizer que fiquei de rastos. Entretanto, o senhor e o rapazinho despediram-se e eu varado sem pensar em mais nada. Já à porta para fora disse-me: "depois vá lá pagar à loja". Isto foi ontem. Hoje tenho de ir lá à loja que é aqui na rua. Tenho mesmo de lá ir pagar. Aliás, além de tomar banho, é a única coisa que tenho programada para fazer hoje.

3 comentários:

  1. Gostei tanto deste diário das termas :)

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  2. Demasiado cansada para ler este testamento, 8 , oito, anos depois, tenho a declarar que vivo numa espécie de palacete que começa a ter água quente em Junho. Junho é o mês, inteligente é o esquentador.

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  3. 8 anos??!! Como assim, alguidares de água e sabonete azul?

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