segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Plano Nacional de Cinema

Desculpem-se se começo por abordar uma iniciativa com tão boas intenções como o Plano Nacional de Cinema (PNC), apresentando na última sexta-feira na Cinemateca Portuguesa, com algum pessimismo. É que penso realisticamente que há motivos para isso. Em primeiro lugar, se o objectivo é a formação do olhar das crianças e jovens na relação com o cinema, e mais genericamente com o fenómeno audiovisual, o que é que nos garante que a “politiquice” não falará mais alto (de novo) e que, como em 1991, o plano não cairá por terra quando mudar a cor do governo? Depois, diga-se uma evidência. Naquela altura, Portugal já estava atrasado em relação à maioria das escolas europeias e norte-americanas. Hoje estar atrasado é uma expressão que já nem define completamente a falta que faz uma pedagogia para o olhar nas estruturas curriculares, desde o mais básico ao universitário. E finalmente não posso deixar conter a ironia pelo facto de tal plano surgir num momento em que genericamente já se estuda a curva de influência decrescente da sétima arte nos suportes de acesso ao conhecimento e à arte. Como se numa altura em que todos estivessem já virados para a “morte do cinema” e as novas tecnologias ligadas à internet, redes sociais, second life, iPads e por aí fora, o nosso sistema de ensino andasse a descobrir as virtudes do cinema… Não sei se tudo isto é mais trágico ou se, dessa discrepância histórica, possa resultar algo inesperadamente criativo. E depois, como toda a gente sabe, esta ironia é duplamente reforçada pelo facto de se tratar de uma iniciativa proposta em plena paralisação funesta do próprio cinema em Portugal. Portanto, se politicamente o timing não é o correcto (e historicamente ainda o é menos), sejamos humildes e contidos na euforia da celebração de uma iniciativa que, de tão óbvia e relevante, deveria ter sido pensada para aí a partir dos 80, pelo menos.

Agora uma outra evidência. O importante neste PNC não é obviamente mostrar filmes às crianças. Porque isso já eles fazem, em casa, com amigos, no cinema, etc. O importante é construir uma estrutura para controlar as condições de visionamento das obras escolhidas e sobretudo construir um discurso pedagógico sobre essas imagens. Esse discurso tem de integrar a importância do meio audiovisual como forma privilegiada de transmissão de informação na actualidade, mas sempre salientando que parte dessa transmissão é feita, quando ao cinema diz respeito, através de um poderoso mecanismo de distorção da lógica informativa que é o dispositivo artístico cinematográfico.

 Desta forma, parece incrível mas é verdade, é ainda hoje necessário combater a ideia de que, como a maioria das pessoas nasceu com esse sentido inato e orientador que é a visão não é necessário aprender a ver.  Esse é um papel de cidadania importante destinado a transformar o consumidor de imagens em alguém que as sabe ler e por isso dotado de um sentido crítico face a estas. Mas tudo isto parece tão óbvio que por isso mesmo merece ser repetido.

E depois há outros elementos que convém ter em conta no pensamento de uma formação no quadro de um PNC (embora Alain Bergala no seu L’hypothèse cinéma já os tenha dissecado quase todos em 2002):

- Dotar os professores de formação adequada por forma a ensinar os filmes como objectos de direito próprio, como arte e meio de expressão, para além do receptáculo de conteúdos que os jovens podem discutir a propósito de cada disciplina.  Ensinar a ver um filme, a ler uma sequência de imagens.

- Como explicar a forma como o cinema pode ser um “espelho” da realidade, uma plataforma para discutir inúmeras questões de todas as áreas?

- Estruturar o uso do cinema para fins pedagógicos de forma também a mostrar a História da própria sétima arte;

- Combater as grelhas críticas de análise aos filmes enquanto objectos fechados e redundantes;

- Articular as diferentes dimensões temporais dos filmes (ou clipes) com a duração das aulas;

- Articular o ensino e os filmes de forma a que não se renuncie ao universo que os jovens reconhecem como seu (obras que estejam perto de si), mas sem nunca abdicar da “violência construtiva do desconhecido” que os clássicos do cinema ou obras importantes do cinema contemporâneo podem trazer.

- Apesar da importância de estabelecer uma relação com o domínio emotivo do cinema (ele é uma espectáculo e uma arte que convoca sensações),  não deixar de ser cirúrgico na relação com a linguagem do cinema, tendo como efeito reflectir sobre certas questões: porque é que um filme, ou uma cena é má? Ou boa? Ou perversa? Ou complexa?

Algumas questões  parecem estar a clarificar-se no projecto piloto prestes a arrancar este ano em 23 escolas do país. Mas estes pontos referidos, que passam muito pela formação dos professores e articulação dos filmes escolhidos com os planos curriculares de cada área e ano, são decisivos se o desejo é o de realmente inserir o cinema na formação dos indivíduos. Esquecê-los equivale a percorrer meio caminho. Equivale a “olhar sem ver”.

Uma nota. Se é muito positivo começar pelos jovens, a julgar pelas entrevistas aos pais a propósito de próprio plano, fica-se com a sensação de que a iliteracia audiovisual em Portugal é um verdadeiro abismo que não sei se iremos a tempo de transpor.

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