segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

A sociedade do cansaço

Lançado no final do ano passado pela Relógio d'Água A Sociedade do Cansaço é um breve ensaio do sul-coreano Byung-Chul Han. Com uma tese de doutoramento sobre Heidegger e colega de Peter Sloterdijk, Byung defende com base em Peter Handke [mais particularmente em Versuch über die Müdigkeit (Ensaio sobre o cansaço, 1992)] uma ideia de cansaço positivo, como forma de nos abandonarmos ao mundo em detrimento da fixação num eu acorrentado à ideia tardomoderna de hiper-produtividade, de ter de viver bem, enquanto empreendedor e "escultor de si". Se o capítulo final de concretização da dita tese, assim como a crítica à análise deleuziana e agambeniana do conto de Melville de Bartleby deixam um pouco a desejar, há ao longo do livro duas ou três ideias muito interessantes das quais gostaria de destacar aqui apenas uma.
  

A definição do sujeito contemporâneo como aquele que vai para além de um paradigma imunológico que reagiria ao diferente como algo que pusesse em caso o seu "organismo" e dimensão de alteridade. Na definição da depressão contemporânea está a incapacidade de gestão da experiência do tédio como gérmen da criação (António Guerreiro falava nisto há umas semanas) e sobretudo assente numa ideia de plenitude (de positividade sem negatividade, sem que haja a potência de não fazer) que afasta a ideia da existência de uma diferença a ser combatida. A globalização, a rede, a hibridação já não são compatíveis com o estabelecimento de fronteiras entre interior/exterior, conhecido/inimigo que o sistema da alteridade e da diferença estabeleceria na modernidade em termos imunológicos. É aliás esta ideia de já não haver um fora, um estrangeiro, um estado de excepção (contrariamente a Agamben, nos seus antípodas diria, para Byung-Chul a sociedade absorve qualquer estado de excepção "totalizando o estado de normalidade") de perpetuação da regularidade, aquilo que permite a Slavoj Žižek, ao analisar os recente atentados ao jornal Charlie Hebdo, desconstruir a oposição dialéctica, e para usar os termos do coreano, imunológica, que coloca em pontos opostos o liberalismo pleno da sociedade ocidental e um "pretenso" extremismo religioso islâmico. Mas não virá tudo, infernalmente, redondamente, freudianamente dirá Zizek, do mesmo conjunto sem exterior?

Interessa-me particularmente o papel da interrupção. O coreano refere: "O nosso mundo de hoje é muito pobre em interrupções, em tempos intermédios e em intervalos. A aceleração suprime todo e qualquer intervalo." É esta a tese de Crary, sobre a qual escrevia aqui também no final do ano passado que no fundo explica que qualquer interrupção é uma fronteira, um entrave ao consumo e ao "cuidado de si" transformado em "empresário de si". Contudo, no inicio de "A Sociedade do Cansaço" o autor abre o livro falando da incapacidade de concentração, da dispersão de estímulos, do sobreaquecimento provocado pelo excesso de idêntico e pelas virtudes da vita contemplativa e do tédio como espaços de memória e construção. O fim de um paradigma da contemplação parece pôr em actuação dois níveis de interrupção. Por um lado, o fluxo é contínuo e não há interrupção ou o intervalo para a reflexão, a distância, a criação de ecrã em relação às coisas. Por outro lado, esse fluxo sem fim das 1001 coisas que devemos fazer e produzir antes de morrer é ele próprio constituída pela constância de micro-interrupções que ajudam a curto-circuitar a longa duração, a persistência, o espaço de engajamento com as coisas.

Porque falamos de interrupções, porque o modelo de rede está ainda assente no paradigma criado pelo cinema (e também na ressaca deste texto interessante lido aqui ontem) convém retomar os problemas de manipulação de informação e estímulo com base no intervalo e na continuidade que a montagem cinematográfica nos proporciona. Esta ajuda-nos a perceber como dominar os fluxos de interacção com os sistemas digitais, articulando sempre as necessidades de dominar as interrupções: a que danifica a continuidade do pensamento e a interrupção da interrupção que geraria esse intervalo do pensamento que está arredado do homem que já não se afunda nas coisas, mas que, "tal como a pedra" diz Nietzsche sobre o homem activo, "rebola ao sabor da estupidez na mecânica." Isto é, da técnica.

Sem comentários:

Enviar um comentário