Lançado no final do ano passado pela Relógio d'Água A Sociedade do
Cansaço é um breve ensaio do sul-coreano Byung-Chul Han. Com uma tese
de doutoramento sobre Heidegger e colega de Peter Sloterdijk, Byung
defende com base em Peter Handke [mais particularmente em Versuch über die Müdigkeit (Ensaio sobre o cansaço, 1992)]
uma ideia de cansaço positivo, como forma de nos abandonarmos ao mundo
em detrimento da fixação num eu acorrentado à ideia tardomoderna de
hiper-produtividade, de ter de viver bem, enquanto empreendedor e "escultor de si". Se o capítulo final de concretização da dita tese, assim como a
crítica à análise deleuziana e agambeniana do conto de Melville de
Bartleby deixam um pouco a desejar, há ao longo do livro duas ou três
ideias muito interessantes das quais gostaria de destacar aqui apenas uma.
A
definição do sujeito contemporâneo como aquele que vai para além de um
paradigma imunológico que reagiria ao diferente como algo que pusesse em
caso o seu "organismo" e dimensão de alteridade. Na definição da
depressão contemporânea está a incapacidade de gestão da experiência do
tédio como gérmen da criação (António Guerreiro falava nisto há umas semanas)
e sobretudo assente numa ideia de plenitude (de positividade sem
negatividade, sem que haja a potência de não fazer) que afasta a ideia
da existência de uma diferença a ser combatida. A globalização, a rede, a
hibridação já não são compatíveis com o estabelecimento de fronteiras
entre interior/exterior, conhecido/inimigo que o sistema da alteridade e
da diferença estabeleceria na modernidade em termos imunológicos. É
aliás esta ideia de já não haver um fora, um estrangeiro, um estado de
excepção (contrariamente a Agamben, nos seus antípodas diria, para
Byung-Chul a sociedade absorve qualquer estado de excepção "totalizando o
estado de normalidade") de perpetuação da regularidade, aquilo que
permite a Slavoj Žižek, ao analisar os recente atentados ao jornal Charlie Hebdo,
desconstruir a oposição dialéctica, e para usar os termos do coreano,
imunológica, que coloca em pontos opostos o liberalismo pleno da
sociedade ocidental e um "pretenso" extremismo religioso islâmico. Mas
não virá tudo, infernalmente, redondamente, freudianamente dirá Zizek,
do mesmo conjunto sem exterior?
Interessa-me
particularmente o papel da interrupção. O coreano refere: "O nosso
mundo de hoje é muito pobre em interrupções, em tempos intermédios e em
intervalos. A aceleração suprime todo e qualquer intervalo." É esta a
tese de Crary, sobre a qual escrevia aqui também no final do ano passado
que no fundo explica que qualquer interrupção é uma fronteira, um
entrave ao consumo e ao "cuidado de si" transformado em "empresário de
si". Contudo, no inicio de "A Sociedade do Cansaço" o autor abre o livro
falando da incapacidade de concentração, da dispersão de estímulos, do
sobreaquecimento provocado pelo excesso de idêntico e pelas virtudes da vita contemplativa
e do tédio como espaços de memória e construção. O fim de um paradigma
da contemplação parece pôr em actuação dois níveis de interrupção. Por
um lado, o fluxo é contínuo e não há interrupção ou o intervalo para a
reflexão, a distância, a criação de ecrã em relação às coisas. Por outro
lado, esse fluxo sem fim das 1001 coisas que devemos fazer e produzir
antes de morrer é ele próprio constituída pela constância de
micro-interrupções que ajudam a curto-circuitar a longa duração, a
persistência, o espaço de engajamento com as coisas.
Porque
falamos de interrupções, porque o modelo de rede está ainda assente no
paradigma criado pelo cinema (e também na ressaca deste texto
interessante lido aqui ontem)
convém retomar os problemas de manipulação de informação e estímulo
com base no intervalo e na continuidade que a montagem cinematográfica nos proporciona. Esta ajuda-nos a perceber como dominar os fluxos de interacção com
os sistemas digitais, articulando sempre as necessidades de dominar as
interrupções: a que danifica a continuidade do pensamento e a interrupção da
interrupção que geraria esse intervalo do pensamento que está arredado
do homem que já não se afunda nas coisas, mas que, "tal como a pedra" diz
Nietzsche sobre o homem activo, "rebola ao sabor da estupidez na
mecânica." Isto é, da técnica.
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