terça-feira, 20 de agosto de 2019

"Once Upon a Time … in Hollywood" de Quentin Tarantino

Um dos dilemas mais interessantes levantados por este novo filme de Tarantino talvez seja ilustrado pela ideia de sombra, mais até do que a tão propalada noção de duplo. É verdade que filmes como Inglourious Basterds (Sacanas Sem Lei, 2009) e Django Unchained (Django Libertado, 2012), pelo menos esses, já tinham apelado para a capacidade do cinema ser essa máquina redentora da história. De certa forma, o passeio pela L.A. de 69 e o episódio do assassinato de Sharon Tate de Once Upon a Time … in Hollywood (Era Uma Vez em… Hollywood, 2019) apelam para essa ideia, mas de uma forma algo diversa. Não é tanto, ou apenas, redenção do que ficou na grande narrativa histórica, mas a atenção às tangentes sombrias, paralelas que sempre acompanham os manuais de história, as lendas imprimidas, a história sem o contrapelo assinalado por Benjamin. Tal não seria um problema em si, esse "elogio da sombra", se ele não viesse acompanhado de um gesto contraditório que o próprio filme encerra: para filmar a sombra, e nela retraçar a ideia de duplificação, de lado B, Tarantino puxa o seu próprio estilo, a sua mise-en-scène, plena de referências e glamour cinéfilo, para a spotlight. Como uma anedota que se conta de forma interminável até que deixemos de acreditar na sua leveza e nos sobre apenas o peso. Temos portanto Tarantino em versão evangelizadora, vertida em método próprio, destacável de personagens. O mundo according with Q.T. aplicável a uma Hollywood em queda lenta mas, sem escândalo, o veríamos transferido a qualquer outro período histórico.

E é essa a questão. Se é verdade que nem todos os filmes de Tarantino são reconstituições históricas, todos eles possuíram sempre uma dada relação com a história... do cinema. Relação essa que surgia em filigrana e que aqui nos é dada em bloco e parece devorar tudo o resto. O que são boas notícias para gáudio do cinéfilo nostálgico que se regozija com uma boa máquina do tempo e que percebe como Tarantino está em Hollywood em 2019, a dizer "era uma vez" uma fábrica de sonhos (alguns, quase todos, entretanto, destruídos). Ainda sobre a noção de duplo pergunto-me: qual o duplo de uma boa ideia, uma má? Once Upon a Time é, a espaços, uma cansativa máquina de duplicar. Máquina essa que está na essência do cinema de Tarantino, mas aqui parece descontrolada. Booth é duplo de Dalton, mas também... o rancho que visita o segundo é duplo do cenário do western televisivo que o primeiro está a filmar; a casa ao lado é dupla da casa ao lado; o papel da televisão é (cada vez mais) duplo do papel do cinema; assim como os westerns do esparguete são o duplo do western americano; Once Upon a Time duplica a redenção de Inglorious; o cinema italiano duplo do brilho americano; as cenas filmadas por Dalton tem um duplo lá fora, na "vida"; Tate vê-se duplicada no ecrã... Em resumo, a máquina rola, mas com pouco com que rolar. O espectador fica entretido a juntar os pontinhos para descobrir todas as duplicações, ou embevecido com as referências que se prolongam ad nauseum. Fica-se, pela primeira vez, com Tarantino "preso" nesta espécie de gimmick que cansa bastante, como uma piada proferida à exaustão, um zeitgeist que deve ser procurado em cada esquina e que a cena final (assim como uma ou duas outras pontuais a meio do filme) procura disfarçar.

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

A Terra do Silêncio e da Escuridão


Quando penso em mãos no cinema vêm-me à memória logo as de Farley Granger, enluvadas, estrangulando a sua vítima no início de "Rope", o love e hate das mãos de Mitchum no "The Night of the Hunter" e ainda a delicadeza e meticulosidade dos dedos finos e compridos de Martin LaSalle em "Pickpocket". Bresson aliás que é tido, entre cinéfilos, como o cineasta "oficial" das mãos. Mas talvez seja necessário acrescentar ainda esta obra prima da tactilidade que é "A Terra do Silêncio e da Escuridão" de Herzog. Não deixa de ser assustador e maravilhoso que um homem que tinha um ano antes filmado a grande dimensão do caos e da crueldade a partir da pequena dimensão dos seus protagonistas anões, tivesse agora embarcado nesta viagem de doçura.

Não motivada por uma homenagem aos cegos surdos que vemos no filme, mas a este desafio intelectual de trazer para a imagem e o som do cinema aqueles que a essas imagens e esses sons não conseguem recorrer para viver no mundo. Restam as mãos para tocá-lo. Os lábios dos outros, os espinhos dos cactos, o pelo dos animais, as vibrações de um rádio a pilhas, a rugosidade dos troncos das árvores. As mãos com olhos e ouvidos em cada poro, superfície hiper codificada em que cada superfície pode ser uma letra, a começar nas vogais na ponta dos dedos. "A Terra do Silêncio e da Escuridão" tem este poder que só as contradições abarcam. Por um lado, Herzog e o seu cinema são fascinados pela capacidade de fazer com que os mundos diferentes, incompreensíveis, isolados, marginais, estigmatizados venham para a luz. Por outro lado, há uma barreira intransponível, uma bolha, que aqui apenas se deixa tocar nos seus contornos. Entre o poço e a imaginação, entre a prisão e o sonho, experimenta-se a amizade, o diálogo, a visita ao zoo, o primeiro voo, ou a poesia.

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

A teia


Nos últimos tempos, em cada manhã, chego ao meu carro, empoeirado, triste de ter passado a noite invariavelmente ao relento e descubro uma teia de aranha, construída no espelho, do lado do condutor. A primeira vez que a vi, limpei-a, distraidamente, enquanto me ajeitava no banco para a curta viagem do dia. Na segunda vez, parei por uns instantes, curioso, achei graça ter outra teia no mesmo sítio. Destruía-a de um gesto seco e arranquei. Terceiro dia: irritei-me. Raio da aranha, onde é que ela pensa que está. A sério, onde é que ela estaria? Dei cabo da teia e espreitei dentro da borracha junto ao espelho. Nada. Nem sinal. Mas afinal... Seriam várias aranhas ou a mesma aranha? Uma construção sempre renovada ou diferentes teias? Uma miragem, um sonho, uma mania? O tempo tem destas coisas, a noite faz milagres, a solidão tem letras ternas. Com o passar dos dias fui-me habituando a remover a teia do espelho antes de entrar no carro. Todos os dias, das cinzas renascida, ela lá estava, viva, em milhares de veios, silenciosa e imponente. Como uma escultura de cristal trazida pela noite. Dia sim, dia não, voltava a procurar a sacana da arquitecta, sempre sem sucesso. Brinquei com a coisa, pensei em cobrar renda, mas não tinha como acertar o valor ante o misterioso e humilde inquilino. Hoje acordei, andei uns quantos passos ensonado, meio trôpego, até ao carro, sentei-me e arranquei. Olhei pela janela. A teia do lado de fora brilhava no orvalho da manhã. A resiliência é um valor que podemos aprender de qualquer das existências. Por mais pequenas, misteriosas que sejam. A partir de hoje será a nossa teia.
Robert Paul. Eis um filme de 1903 cheio de camadas e géneros. Início idílico e calmo, o mundo vai bem, uma rua onde passam pessoas, um casal flirta, uma senhora passa apressada. Subitamente, o perigo aproxima-se. Uma carruagem surge com alguma velocidade ao virar da esquina e o senhor ainda despedindo-se, embevecido com a senhora. Suspense. Há o momento do atropelamento com a trucagem mas mantendo uma certa agressividade. O mudo ainda não sabia virar a cara e por isso vemos mesmo o cavalo passar por cima do senhor/boneco. E lá atrás, a magia: surgem os voyeurs do cinema que sempre param tudo por um bom acidente. Segue-se o importante momento da morte, o drama. Mas também a punição do responsável pois este é logo perseguido por um polícia que sai de campo e volta a entrar com o mau da fita. A questão moral e da redenção. Finalmente a farsa. Tudo não passara de uma blague e a vítima ressuscita e foge com a sua amada. Final mais do que feliz. E tudo isto não chega a um minuto.



quarta-feira, 14 de agosto de 2019





O cinema é uma arte do tempo.
Still de 
Cendrillon (1899) de Georges Méliès 

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Também os Anões Começaram por Baixo



É difícil sair ileso de "Auch Zwerge haben klein angefangen" do Herzog. Em português, "Também os Anões Começaram por Baixo". Os risos intermináveis do bando de anões, inquietos e sádicos, toda aquela demonstração dionisíaca com a crucificação do macaco, o lançamento das galinhas, as flores a arder, ainda a imagem símbolo do carro a andar em círculos. Herzog queria filmar uma ideia - normalmente é meio caminho para a desgraça - do desajustamento do mundo em relação ao humano (somos todos anões, à nossa maneira, dizia). O mundo sempre é gigante, nos supera e trai e, por isso, reagimos de forma desorientada, impotente, cruel. E o mesmo com a natureza e o mundo animal. Assim seja. Por esta altura já Herzog havia sido mordido por ratazanas na cara e sabia do assunto.

O filme foi sobretudo atacado por ser apolítico, Maio de 68, Baader-Meinhof, a comunidade do cinema exigia-lhe uma posição firme. Mas é interessante ver como olhar hoje para este filme de Herzog mostra bem a inversão de todas as intenções. Tudo saiu furado. É verdade que o alemão queria fugir dos activismos, mas todo o "plot", mínimo, é precisamente o de um bando que procura a invasão de uma casa e a sua própria evasão. Os planos prolongam-se sobretudo nos momentos de insurreição e de libertação de uma energia de revolução. Já, pelo contrário, o que estava certo, esse manual de proporções com o mundo, essa lição de crueldade, é hoje, passados 50 anos, na sua ideia de mise-en-scène, ofuscada por uma atmosfera de pura provocação. Um levar aos limites do mal-estar, um subtil fascínio pelo mal, uma vontade de filmar o horror, seja na galinha que carrega o rato morto no bico, ou os planos obsessivos da galinha manca. Feitas as contas a "perífrase" de "Também os Anões Começaram por Baixo" podia bem ser: "Freaks" + "Torre Bela". Mas não é completa. "Funny Games" seria, por exemplo, uma forma de demonstrar o Haneke que há no jovem Herzog, nomeadamente no seu comprazimento em mostrar aquilo que nos faz querer desviar o olhar..

sábado, 10 de agosto de 2019

"Bob & Carol & Ted & Alice" de Paul Mazursky


A primeira longa de Paul Mazursky, Bob & Carol & Ted & Alice, de 69, é um filme que procurava abordar a questão do sexo de forma adulta e frontal. Como se dizia no workshop, que as personagens de Natalie Wood e Robert Culp frequentam no início do filme, era preciso olhar as pessoas mesmo na cara, não desviar o rosto. A mesma coisa com os affaires da carne, os apetites. Basta pensar no rosto impassível do psiquiatra perante o discurso cheio de vergonhas e evasivas de Alice (Dyan Cannon), ou a forma como o filme termina, daquela forma meio surreal, à saída de um casino - orgia meio conseguida ou meio tentada - com os dois casais olhando-se e olhando desconhecidos olhos nos olhos, enquanto ouvimos Jackie DeShannon cantar, do clássico de Burt Bacharach/ Hal David: "What the world needs now is love, sweet love / It's the only thing that there's just too little of".

Neste belo texto do Francisco, sobre um filme posterior de Mazursky, Blume in Love, ele faz uma distinção importante entre ligeireza e leveza. Mazurky consegue ser leve, sem ser ligeiro. Aliás, talvez também esteja numa distinção deste tipo a possibilidade de compreender a posição do realizador entre a seriedade e o peso de Bergman (Cenas de Uma Vida Conjugal só surgiria em 73, mas não há como não pensar na ligação/contraste entre a fisicalidade leve de Elliott Gould (o Ted) e a presença solene de um actor como Erland Josephson, nas "cenas de cama") e a ligeireza, pelo menos em termos de uma maior exposição do seu humor, em algumas das comédias sexuais de Woody Allen. Bob & Carol & Ted & Alice é a manifestação desta leveza, em que dois casais descobrem a possibilidade de uma abordagem mais franca da sexualidade, sem que isso tenha um peso trágico necessário ou que o riso contorne as questões. Aliás, sendo um filme de chambre, as suas cenas no exterior, algo bizarras, fazem essa transição, nada ligeira, entre o início e o fim do filme: que é como poderia dizer entre o início dos anos 60, com suas ideias new age, muitas vezes rotuladas de excêntricas ou "de época" (a cena do workshop) e o final dos anos 60, trazendo essa franqueza para aos quartos dos norte-americanos e as ruas citadinas (a já referida cena de fim). Coming of age de uma new age, de certa forma.

E, além disso, há outro pormenor importante. Não sabemos nunca se os casais trocam de facto, se a orgia entre os amigos de longa data acontece. Mazursky prefere antes a potencialidade de uma outra lógica relacional, sem que queira impor uma moral, aberta ou fechada, às suas personagens. Não é por acaso que, como também se refere no texto do Francisco, este seja um cineasta tão permeável ao cinema europeu que se fazia. Há Fellini, há Bergman, há o ennui burguês de Antonioni, mas também há Rohmer . Ma nuit chez Maud é do mesmo ano de Bob & Carol & Ted & Alice. E ambos são filmes-conversa, filmes interiores, que cruzam o sexo entre as personagens. Ou melhor a possibilidade do sexo. O que significa que Mazursky e a sua leveza não têm bem definido um destinatário, nem um dono, e talvez por isso ainda hoje se mantenha aqui connosco, em potência de amor, em potência de foda.

sábado, 3 de agosto de 2019

Tudo aquilo que me ensinou é merda

Sim, sim. Ainda tenho ótimos alunos, um pouco por todo o mundo, com quem mantenho contacto. E há cinco ou seis deles que são muito mais capazes e talentosos do que eu. Esta é a maior recompensa que um professor pode ter: saber que um aluno é mais capaz do que ele próprio. Houve também algumas surpresas. Tive uma aluna tão tímida que nem sequer tirava o casaco quando vinha reunir-se comigo. Mas conseguiu a melhor nota do seu ano, summa cum laude, e depois disse-me: “Venho despedir-me e dizer-lhe que tudo aquilo que me ensinou é merda.” 

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Se eu tivesse o engenho de Cervantes

"Se eu tivesse o engenho de Cervantes, faria um livro para purgar a Itália, ou antes, todo o mundo civilizado – como ele purgou a Espanha da imitação dos cavaleiros errantes – de um vício que, tendo em conta a mansidão dos costumes actuais, ou talvez até em todos os outros casos, não é menos cruel nem menos bárbaro do que qualquer outro vestígio da ferocidade dos tempos medievais punido por Cervantes. Refiro-me ao vício de ler ou declamar aos outros as próprias composições: vício que, sendo antiquíssimo, nos séculos passados foi uma desgraça ainda tolerável, porque rara: mas hoje, que todos escrevem, e não há nada mais difícil do que encontrar quem não seja autor, tornou-se um flagelo, uma calamidade pública, uma nova tribulação da vida humana. E não é gracejo, mas a verdade, dizer que para este os conhecidos são suspeitos e as amizades perigosas, e que não há hora nem lugar onde qualquer inocente não deva temer ser apanhado e submetido aí mesmo, ou arrastado para outro sítio, ao suplício de ouvir prosas sem fim ou versos aos milhares (…)”


Giacomo Leopardi 

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Pin-up exemplar




“A pin-up exemplar, imagem da mulher jovem ideal, renova a fotografia cuidadosamente retocada, enviada pela “madrinha de guerra”, essa noiva de morte, distante, intocável e na maioria das vezes desconhecida, já que só se manifesta ao soldado em cartas e encomendas que continham, além de outras “doçuras”, algumas relíquias da própria mulher, como madeixas de cabelo, perfume, luvas ou flores secas. Esta situação é ilustrativa da reflexão de Rudolph Arnheim sobre um cinema em que, depois de 1914, o actor se torna acessório e o acessório torna-se protagonista: de facto, numa guerra da qual ainda está excluída, a mulher tornou-se uma tragédia objectiva. O olhar obsceno lançado pelo conquistador militar sobre o corpo tornado distante da mulher é o mesmo que lança sobre o corpo territorial desertificado pela guerra, e procede assim directamente o voyeurismo do “realizador” quando filma o rosto da estrela como quem filma uma paisagem com o seu relevo, os seus lagos e vales que ele só tem de iluminar com uma câmara que, segundo Josef von Sternberg, inventor de Marlene Dietrich, atingia à queima-roupa… (…) Durante e depois da Segunda Guerra Mundial, a generalização do striptease (trocadilho com fitas de cinema e excitação sexual) indica as dimensões tomadas por esta transferência tecnófila numa sociedade que se militariza. Antes censurado, o striptease será imposto pelo exército em Inglaterra, nomeadamente com a célebre Phyllis Dixey. A dançarina que se despe em cena torna-se (tal como o soldado) um filme para os que a observam, soltando lentamente as peças de roupa como se fossem sequências, como os movimentos lascivos a fazer as vezes de imagens em fade out e a música de fundo como banda sonora.”