sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Se eu tivesse o engenho de Cervantes

"Se eu tivesse o engenho de Cervantes, faria um livro para purgar a Itália, ou antes, todo o mundo civilizado – como ele purgou a Espanha da imitação dos cavaleiros errantes – de um vício que, tendo em conta a mansidão dos costumes actuais, ou talvez até em todos os outros casos, não é menos cruel nem menos bárbaro do que qualquer outro vestígio da ferocidade dos tempos medievais punido por Cervantes. Refiro-me ao vício de ler ou declamar aos outros as próprias composições: vício que, sendo antiquíssimo, nos séculos passados foi uma desgraça ainda tolerável, porque rara: mas hoje, que todos escrevem, e não há nada mais difícil do que encontrar quem não seja autor, tornou-se um flagelo, uma calamidade pública, uma nova tribulação da vida humana. E não é gracejo, mas a verdade, dizer que para este os conhecidos são suspeitos e as amizades perigosas, e que não há hora nem lugar onde qualquer inocente não deva temer ser apanhado e submetido aí mesmo, ou arrastado para outro sítio, ao suplício de ouvir prosas sem fim ou versos aos milhares (…)”


Giacomo Leopardi 

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