segunda-feira, 19 de agosto de 2019

A Terra do Silêncio e da Escuridão


Quando penso em mãos no cinema vêm-me à memória logo as de Farley Granger, enluvadas, estrangulando a sua vítima no início de "Rope", o love e hate das mãos de Mitchum no "The Night of the Hunter" e ainda a delicadeza e meticulosidade dos dedos finos e compridos de Martin LaSalle em "Pickpocket". Bresson aliás que é tido, entre cinéfilos, como o cineasta "oficial" das mãos. Mas talvez seja necessário acrescentar ainda esta obra prima da tactilidade que é "A Terra do Silêncio e da Escuridão" de Herzog. Não deixa de ser assustador e maravilhoso que um homem que tinha um ano antes filmado a grande dimensão do caos e da crueldade a partir da pequena dimensão dos seus protagonistas anões, tivesse agora embarcado nesta viagem de doçura.

Não motivada por uma homenagem aos cegos surdos que vemos no filme, mas a este desafio intelectual de trazer para a imagem e o som do cinema aqueles que a essas imagens e esses sons não conseguem recorrer para viver no mundo. Restam as mãos para tocá-lo. Os lábios dos outros, os espinhos dos cactos, o pelo dos animais, as vibrações de um rádio a pilhas, a rugosidade dos troncos das árvores. As mãos com olhos e ouvidos em cada poro, superfície hiper codificada em que cada superfície pode ser uma letra, a começar nas vogais na ponta dos dedos. "A Terra do Silêncio e da Escuridão" tem este poder que só as contradições abarcam. Por um lado, Herzog e o seu cinema são fascinados pela capacidade de fazer com que os mundos diferentes, incompreensíveis, isolados, marginais, estigmatizados venham para a luz. Por outro lado, há uma barreira intransponível, uma bolha, que aqui apenas se deixa tocar nos seus contornos. Entre o poço e a imaginação, entre a prisão e o sonho, experimenta-se a amizade, o diálogo, a visita ao zoo, o primeiro voo, ou a poesia.

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