sexta-feira, 26 de julho de 2024

improbabilidade da beleza

Em frente da minha casa nasceu uma pequena flor. Cresceu entre os ferros de uma tampa de escoamento de água. Não sei se se sente apertada, mas bebe do sol diário e da água da limpeza do pátio. Em breve, um pé anónimo - não será o meu - acabará com ela. Contudo, enquanto viver, ela é um pequeno sinal da improbabilidade da beleza.

domingo, 23 de maio de 2021


Toda a gente supostamente espantada com as condições miseráveis de habitação dos trabalhadores migrantes em Odemira. Fassbinder em 74. Diz que passaram "só" 47 anos.


quarta-feira, 12 de maio de 2021

 



Le Mépris termina sob o signo do silêncio e do fim, ambos albergando um primeiro olhar de Ulisses de regresso à pátria. Contudo, antes desse regresso que faz terminar, Godard havia filmado a partida que faz começar esse mesmo fim. Como? Filmando a súbita barreira intransponível que se ergue entre duas pessoas que deixam de sentir amor correspondido. Fala-se recorrentemente dos jump cuts como técnica que passa a normalizar a instabilidade no olhar na Nouvelle Vague. Contudo, entre estes dois planos – Camille a ser “raptada” pelo produtor Prokosh e a chegada do marido Paul a casa daquele, minutos, horas (décadas?) depois – há um salto muito maior, um buraco negro. Godard mete naquela meia dúzia de planos um abismo amnésico, onde tudo muda. O fim do amor como uma temporalidade difusa, um jump cut que dura séculos e um bater de pálpebras. Nunca mais saberemos o que fez morrer o amor de Camille e Paul, não vimos nascer o desprezo, mas sabemos que aconteceu algures entre a ruína e o jardim resplandecente.






terça-feira, 4 de maio de 2021

 Ao ver a proximidade dos rostos das personagens de Nomadland - em momentos quase documentais -, pensava na inversão da celebre frase que dizia que os bons filmes são sempre documentários sobre a sua rodagem. Pelo contrário, hoje, os filmes são as rodagens do seu "documentário". Já não tanto a busca do autêntico e real no cinema - ambições de um certo cinema moderno-, mas a procura de conservar uma ideia de realidade como "product placement".


 A estranheza, o abismo inexplicável de certos filmes, obras outrora primas, dá hoje lugar à superfície, à clareza das causas. Curiosamente, parte desta clareza reivindicativa surge como resposta ao facto de termos andado, anos após anos, a tentar deslindar esses abismos, essas relações, essas formulações obscuras. Não gostámos do que achámos e descolonizámos essa “versão” do real, “colonizando” o cinema enquanto linguagem artística. A pergunta "o que é isto?" deu lugar à resposta "isto é aquilo que sempre devia ter sido".

domingo, 25 de abril de 2021



 “Mónica e o Desejo” costuma dizer-se é um filme de espelhos e de olhares. Reflexos de crescimento, personagens a ganhar peso à volta dos olhos. Diz-se ainda que é um filme de água e de ilhas – um idílio natural em espelho com o cinema, este uma espécie de sonho concentrado, Verões de 90 minutos. Mas Bergman ainda faz uma outra coisa que gosto muito. É capaz de mostrar no espaço de poucos minutos o mais belo, romântico e erótico – os planos das costas de Monika, o cigarro e beijo que partilha com Harry, a dança a dois no pontão deserto –, mas também o mais boçal, o mais banal dos actos. Harriet masca pastilhas de boca aberta e caça nacos de assado como um animal selvagem. É talvez também a nossa carne em espelho a que vemos quando, de estação em estação, ela ama e envelhece nos mesmos minutos, nas mesmas horas, nos mesmos anos.


segunda-feira, 29 de março de 2021


 

Ao rever "Roma, Cidade Aberta" para uma aula dou por mim a tropeçar naquele estereotipo verdadeiro de como as obras maiores são poços sem fundo nos quais caímos sempre que lá deixamos entreter o olhar. Desta vez fiquei a cismar naquele momento em que o Don Pietro, no calabouço nazi, diz ao desertor austríaco - personagem magnífica e síntese das contradições da guerra - para ficar calmo e tentar rezar. No plano seguinte, vemos o austríaco encostado a uma parede, mais calmo, sim, rosto iluminado na cela toda escura. Ele repara em qualquer coisa fora de campo e Rossellini segue com a câmara o seu levantar. Dá uns passos na escuridão até que volta a ficar banhado de luz, mão que lentamente sobe junto à parede para tocar "isso" que acabara de ver. A luz do plano lembra-nos essa luz do céu - o padre havia-lhe dito para serenar na oração - e uma ascensão espiritual. Mas o terrível é que a luz que nos lembra esse momento de ascese é a mesma luz que nos irá revelar, afinal, o objecto da sua atenção: o cano onde se irá enforcar. Oração e suicídio numa questão de segundos, na mesma luz, no mesmo caldo ambíguo da salvação e da perdição. Perdão, da resistência.