domingo, 30 de abril de 2017

Árvore da Cinefilia #4- Álvaro Martins

Desde que me lembro do que quer que seja da minha vida que me recordo de ver filmes, devia ter uns 6 ou 7 anos e já era completamente siderado, por exemplo, pela saga «Star Wars». Mas o plano que me traz aqui a esta rúbrica do Carlos, a quem desde já deixo o meu agradecimento pelo convite feito, não diz respeito aos «Star Wars» e sim ao filme que me fez ter um fascínio e uma paixão pelos westerns. Falo de «Rio Bravo» de Howard Hawks. Que me lembre, se não foi o primeiro western (talvez o primeiro que vi tenha sido um spaghetti, «Il buono, il brutto, il cativo» do Leone, ainda em tenra idade, como de resto aconteceu com o filme do Hawks), foi um dos “meus” primeiros westerns e aquele filme que me fez olhar o cinema doutra forma que até então não havia olhado. E isto porque «Rio Bravo» é um western que corre os caminhos tortuosos da mente humana (em Dude) e se afasta da pura e eterna luta entre cowboys e índios… aliás, aqui não há índios… mergulha na resistência e na firmeza daqueles que tudo fazem e tudo lutam pela justiça, pela lei e pela ordem no velho Oeste. E engane-se aquele que diz que em «Rio Bravo» não se passa nada. É verdade que maior parte do tempo se está na espera, na espera pelo Marshall que virá buscar Burdette, mas é nessa espera e nesse “nada” que tudo acontece e tudo se passa, é nessa espera que Dude se redime e se “recompõe” do alcoolismo, é nessa espera que Wheller é morto e Colorado decide ficar e ajudar os nossos heróis, é nesse “nada” que Hawks desenvolve e nos mostra os comportamentos humanos, é nessa espera que Feathers “desarma” e conquista Chance, é nessa espera que tudo acontece e esse “nada” se transforma em “tudo”…




O plano escolhido precede a morte de Wheller e a perseguição de Chance (Wayne) e Dude (Martin) ao seu assassino que após escapar dum celeiro e ser alvejado por Dude se esconde no saloon. Este entra pela porta principal enquanto Chance entra pelas traseiras, num saloon repleto de pistoleiros de Nath Burdette, o irmão do preso, o todo-poderoso lá do sítio e que tudo quer e vai fazer para libertar o irmão. Os dois lá dentro e Dude ordena que atirem os coldres para o chão e se afastem das armas, inspecciona as botas de todos em busca de lama nelas para poder identificar o criminoso… nada feito e um deles tenta humilhar o borrachón (como todos lhe chamavam, a Dude) atirando-lhe com uma moeda para a cuspideira (“revisitando” a cena inicial do filme e que origina toda a história e toda a vontade e determinação da reabilitação de Dude). Parecendo desistir pede uma cerveja ao barman que segundos antes lha tinha oferecido e é quando Dude repara nas gotas de sangue a cair na caneca…aí a mestria de Hawks eleva-se (como o assassino de Wheller) pois num plano picado nos mostra o assassino por cima de Dude, no alto, simbologia das simbologias – este está bem “alto” enquanto ele, Dude, está lá em baixo, bem pequeno e humilhado… o borrachón… Nessa cena temos pela segunda vez o confronto psicológico de Dude com o alcoolismo a misturar-se com o orgulho e o confronto com os tais pistoleiros de Burdette; estaé não só uma das cenas mais cruciais do filme como é o “despertar” de Dude para a reabilitação deste sob a figura do herói renascido, é a queda de quem estava em cima (literalmente e figuradamente) e a ascensão de quem estava em baixo. Sei lá, qualquer coisa como isto… é provavelmente o western da minha vida e o filme ao qual mais vezes “retorno”.

Álvaro Martins*


*Álvaro Martins, o meu convidado cinéfilo de hoje, é autor do blogue PRETO e BRANCO e um dos responsáveis pelo período de ouro da blogosfera de cinema em Portugal. 

Para saber mais sobre a rubrica Árvore da Cinefilia.
Edições anteriores: #1 Francisco Rocha.
                                    #2 Pedro Correia.
                                    #3 Carlos Alberto Carrilho


sábado, 29 de abril de 2017

Spellbound - Alfred Hitchcock


Período de guerra, tudo meio maluco da cabeça, sonhos por controlar, desejos reprimidos, venha a imposição de um certa ordem, as lembranças no lugar correcto, nem que seja por via da psicanálise. «Spellbound» sofre desse «mal», do dispositivo freudiano que decretava, do alto da sua autoridade, um furioso sistema hermenêutico na desordem das paixões e do inconsciente. Só que aqui havia um mar de distância entre o produtor David O. Selznick e Alfred Hitchcock. Não só porque à data do início do projecto este estava em Londres e o primeiro em Hollywood, mas sobretudo porque este queria usar os "ditos" de Freud na adaptação do romance «The House of Dr. Edwardes» como um mecanismo explicador e sobretudo agregador do par amoroso Bergman-Peck. Já Hitch percebera que «there are no lions in the scottish highlands», ou seja, que quando a psicanálise começava a ditar isso era macGuffin - como o comprova o mais chato de «Spellbound», o seu argumento explicativo e a forma  intrincada pela qual sabemos a verdadeira identidade e motivações da personagem de Gregory PeckMas o filme não é sobre isso e aqui está finalmente o que o separava do produtor da Selznick International: a psicanálise era uma porta de entrada no potencial libertador da imagem. Assim, como o plano das portas que se abrem sucessivamente, com o beijo entre a reprimida Dr. Constance Petersen  e o falso Dr. Edwardes, também «Spellbound» aproveita esse potencial libertador. É não só a sequência desordenadora, por entre a qual entra ar ao filme, dos sonhos desenhados por Dalí, mas também a inversão da lógica entre a imagem como algo que deve explicar ou complicar o consciente. O espectador "queria" ver os sonhos para perceber a personagem de Peck - isto é, as imagens dos acidentes, dos slopes, das conversas lógicas e intermináveis com o Dr. Brulov - mas Hitchcock usava essa «distracção» para complicar pela imagem. Os já referidos planos das portas, a mão gigante (visivelmente de madeira) a dobrar do ponto de vista do culpado ao da vítima, a cena inicial da mulher patologicamente sedutora são tudo os indícios de uma mise-en-scène paralela que revela os sonhos e indícios do que há verdadeiramente a explicar em «Spellbound»: o desejo sexual de Ingrid Bergman e, por extensão, do homem que olha e desejava todas as mulheres sem as tocar. São as imagens sempre essas que nos introduzem aos caminhos de um desejo trancado e que, sem explicações verbais, nos mostram como esse desejo se destrancou. Pelo meio ficaram umas mortes e um mistério vazio resolvido pela táctica «misteriosa» com que em Hollywood se vendiam os «aléms de bolso» da psicanálise.

sexta-feira, 28 de abril de 2017

Rapar as barbas

«Porque nos causará a Europa, sejamos nós quem formos, uma impressão tão forte e sedutora? Não falo daqueles russos que ficaram na Rússia, daqueles russos cujo nome é cinquenta milhões, e a quem nós, os cem mil restantes, até aos dias de hoje e muito a sério, consideramos ninguém, e de quem as nossas muito profundas revistas satíricas escarnecem, até aos dias de hoje, porque eles não rapam as barbas.»,

 Fiódor Dostoiévski in Apontamentos de Inverno sobre Impressões de Verão (1863)

quinta-feira, 27 de abril de 2017

Ballad of a Thin Man



Engraçado que toda a gente corra a interpretar o significado da letra do Dylan, «Ballad of a Thin Man», do seu sexto album de originais «Highway 61 Revisited» (1965). O que quer ele dizer quando escrevia Because something is happening here // But you don’t know what it is// Do you, Mister Jones?. Quem era o Mister Jones? Interpretações para todos os gostos: o Jones representava o jornalista metediço e hermeneuta, o homossexual a descobrir a sua sexualidade, um homem que colocava os pins e que este vira uma vez numa sessão de bowling, ou simplesmente, eram as pessoas que lhe faziam perguntas a todo o tempo. Todas estas teorias fazem de todos nós Mr. Jones. Mas se isso é verdade, e acredito que o seja, então esta balada faz de Dylan o mais bartlebiano de todos os músicos modernos.

Personally, I prefer the book.

François Truffaut: I see. Was the adaptation [Rebecca] faithful to the novel?

Alfred Hitchcock: Yes, it follows the novel very faithfully because Selznick had just made Gone With the Wind. He has a theory that people who had read the novel would have been very upset if it had been changed on the screen, and he felt this dictum should also apply to Rebecca. You probably know the story of the two goats who are eating up cans containing the reels of a film taken from a best seller. And one goat says to the other, «Personally, I prefer the book!».

quarta-feira, 26 de abril de 2017

Entrevista aos programadores do Lucky Star


Depois da conversa com o realizador José Oliveira, fui ao norte novamente  falar com ele e com o João Palhares sobre o seu cineclube. Fui a uma sessão, «Gremlins 2», comi feijoada minhota e acabámos a falar sobre programação, crítica e formas de ver e pensar sobre cinema. O José e o João, além de andarem nisto há já muito tempo, criaram, há um ano e tal, um cineclube em Braga, o Lucky Star, que tem uma proposta cinematográfica de grande qualidade. Aqui fica a nossa conversa. Os espectadores, presenciais ou online, podem beneficiar das suas propostas, neste exercício de programação algures situada entre o local e o global.

terça-feira, 25 de abril de 2017

Abelhas tímidas


Quando em modo de socialização - numa festa ou evento qualquer - há sempre aquele momento em que, ou eu ou o meu interlocutor, terminamos a nossa breve troca de palavras com um "até já" ou "vou só ali". As variações possíveis não são muitas. O objectivo é pôr um ponto final na conversa para podermos deambular um pouco pelo espaço, farejar outra vítima, e recomeçar o processo da micro-conversa de ocasião. Mesmo que a maior parte das vezes até possa ficar aliviado com a tormenta que é falar com uma pessoa com a qual, muitas das vezes, não tenho grande familiaridade, há qualquer coisa de triste nestes dia-logos  curtos e performativos que acabam à faca. Se sou eu que estou a gostar da conversa e é a outra parte que a corta é a decepção. Se a coisa se inverte, não há como não sentir um mal-estar, uma consciência pesada pelo descarte, pelo "desculpa lá, mas agora quero mudar de parceiro." Estes ritmos da sociabilidade têm qualquer coisa de polinização, de sexualização das palavras. Somos abelhas tímidas, ferozes, pousando em flores entusiasmantes, decepcionantes. No final só queremos o mel do estímulo intelectual, da oportunidade de nos dar a ver, e, para isso, pouco importa o que fazemos para o obter. Mesmo acabar com o melhor de nós: a troca.

segunda-feira, 24 de abril de 2017

Quando Jean Cocteau se mudou de Paris para uma zona rural de França, chamada Milly-la-Fôret, fizeram-lhe uma entrevista em que lhe perguntavam: «Se houvesse lá um incêndio, que objectos salvava?». «Creio que salvava o fogo», foi o que respondeu. Há 10 anos, quando salvei esta citação para uma caderninho de notas, parecia-me o mais acertado a fazer, manter o fogo. Hoje não mudei de opinião, o fogo é que ganhou diferentes temperaturas.

domingo, 23 de abril de 2017

Árvore da Cinefilia #3 - Carlos Alberto Carrilho


Apesar das centenas de filmes que, ano após ano, acrescento à minha lista de visionamentos, tendo a manter uma certa fidelidade na ordem de preferências. De resto, existem filmes que secretamente amo, mesmo antes de saber que existem, como é o caso de «The Texas Chain Saw Massacre» (Massacre no Texas, 1974), que Tobe Hooper realizara como se fosse um documentário. Com alguma desilusão, descobri que o filme com que repetidamente sonhara, não era o de Tobe Hooper. A violência gráfica atordoante impeliu-me a refugiar em pequenos detalhes que se misturavam com as minhas memórias e que outros não viam ou consideravam irrelevantes. Entre eles estavam porcos a chafurdarem livremente pela casa entre esculturas produzidas com ossos e galinhas encarceradas em minúsculas gaiolas desproporcionadas para o seu tamanho, embalados pelos efeitos sonoros e instrumentos não convencionais da partitura de Tobe Hooper e Wayne Bell. Depois havia a expressão angustiada do monstro, que olhava incrédulo pela janela, enquanto adolescentes imberbes lhe invadiam a casa, sem pedir licença ou bater à porta. Não mais parariam de entrar, cada vez com menos neurónios e mais impulsos libidinosos.

Carlos Alberto Carrilho *

*Carlos Alberto Carrilho, o meu convidado cinéfilo de hoje, é colaborador no site À pala de Walsh, programador no colectivo artístico White Noise, autor do blogue there's something out there, alem de trabalhar há vários anos na Maumaus 

Para saber mais sobre a rubrica Árvore da Cinefilia.
Edições anteriores: #1 Francisco Rocha.
                                    #2 Pedro Correia.

sábado, 22 de abril de 2017

A minha rua é toda esburacada


A minha rua é toda esburacada. Há pedaços de alcatrão arrancados às mãos cheias pelo tempo, parece que fizeram desmaiar um prédio para fazer nascer outro e não há quem não tropece na estrada porque é tudo tão inclinado. Na minha rua o vento passeia, ligeiro, e há cactos gigantes e mesmo cobras. Juro: elas rastejam aos ziguezagues e são intermináveis. Os velhotes vêm passear os cãezinhos e as artroses, um há que arranja tapetes de Arraiolos, para quem estiver interessado. A minha rua é o meu ringue de patinagem, o meu circo de atracções que vê passar as estações: Verão, Outono, Inverno, Primavera. As folhinhas desfilam todas vaidosas por entre o habitual tetris de carros, essas envelhecidas máquinas a suspirar vapores e a suar óleo. Às vezes, quando joga o Benfica, não se ouve vivalma, só os uhhhh.... ahhhh... E quando é golo os pássaros piam e levantam voo, indiferentes. À noite não há pessoas e não há luzes na rua e tudo, parece, continua inclinado, esburacado, assim no breu à espera da claridade. 

Para quando cá mudei desconfiei dos meus passos e da minha voz: chamar por ajuda, ver o mundo, sei lá eu. Entretanto, o tempo altercou-se com o alcatrão, as vozes das poucas pessoas fizeram-se erva e pó. Há um caminho secreto na minha rua que toda a gente conhece e que contorna o capim, um moinho e um gato preto, é uma entrada que dá para uma quinta, com camiões. Percorri umas quantas vezes esse caminho e quando chego ao fim volto para trás, há uma vizinha que espreita por detrás da roupa estendida, uma silva  que me arranha o calcanhar e mais nada. Se querem saber não sei, não sei a partir de quando é que percebi que a minha rua dá para o outro lado da cidade, para o aberto. E que os buracos da minha rua sou eu todo esburacado, sem máquinas de alisar alcatrão, onde, por vezes, chove, e fica tudo intransitável, mas logo de seguida rebentam sementes e depois, claro, recomeça a Primavera.

Circular

«Sempre pensei que não era possível, mas aparentemente é: uma pessoa pode, de facto, nascer e viver toda uma vida até morrer sem ver um Chaplin...» (Por vezes é preciso pôr a circular aí pelo mundo estas frases do João Mário Grilo. Esta ouvia-a ontem no encontro sobre Cinema e Educação, na Cinemateca Portuguesa)

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Vai mas é trabalhar, malandro!


O quem têm estes livros em comum além do facto de hoje me terem chegado à porta? Duas hipóteses: a primeira, dispersão, a segunda, dispersão.

quarta-feira, 19 de abril de 2017

Entrevista a José Oliveira

O À pala de Walsh serve para isto: juntar, ouvir, aprender com pessoas que amam o cinema. É o caso do José Oliveira com quem conversei ali num café para os lados da Cinemateca. Leiam a entrevista e não percam hoje os seus filmes que passam nessa mesma Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema no contexto do ciclo «Cinema Português - Novos Olhares». Atentos, pois já amanhã sai a segunda parte desta conversa, desta vez versando mais sobre crítica de cinema, cinefilia e programação, à qual se juntou o João Palhares, ex-colaborador walshiano e que, juntamente com o José, é o fundador do LUCKY STAR - Cineclube de Braga.

terça-feira, 18 de abril de 2017

Dellamorte Dellamore (1994) de Michele Soavi

O realizador Michele Soavi está em Lisboa para apresentar o seu filme «Dellamorte Dellamore». Escrevi sobre aqui.

domingo, 16 de abril de 2017

Árvore da Cinefilia #2 - Pedro Correia


O que importa é partir e não chegar

“Não podias gostar de mim? Apenas de mim, tal como sou?”, pergunta Kim Novak a James Stewart numa cena capital de Vertigo, sabendo que tem como séria concorrente uma hipotética dupla de si própria. Poucos filmes há como este, tão sulcado por vias sinuosas que acabam por desvendar o essencial da natureza humana, propensa a procurar o inalcançável. O melhor cinema é sempre este – o que nos remete para o mais relevante da vida, por vezes à boleia de um desempenho inesperado. Kim Novak, que só obteve o papel de Judy devido à gravidez de Vera Miles, primeira actriz eleita por Alfred Hitchcock, confere um toque de fragilidade suplementar à personagem, perturbante aparição enquanto objecto de um desejo sempre por consumar. “Um dos melhores desempenhos femininos na Sétima Arte”, rendeu-se David Thomson, nada fácil de contentar. Um clássico é isto: uma obra que nunca cessa de nos interpelar. Do fundo dos tempos continuará a soar-nos a dolorosa pergunta dela, ansiando por uma resposta que jamais virá. No cinema, como em qualquer viagem, o que importa é partir e não chegar.

Pedro Correia *

*Pedro Correia, o meu convidado cinéfilo de hoje, é consultor de comunicação, ensaísta e escritor no blogue Delito de Opinião

Para saber mais sobre a rubrica Árvore da Cinefilia.
Edições anteriores: #1 Francisco Rocha.


sábado, 15 de abril de 2017

Pancada decisiva

« Nos começos do século XX, houve um cavalo alemão que se tornou uma celebridade mundial. Atribuía-se-lhe a capacidade de calcular. E passou a ser conhecido com o Inteligente Hans. Respondia correctamente, com o casco ou a cabeça, quando lhe apresentavam problemas de cálculo simples. Assim quando lhe perguntavam: - Quantos são três mais cinco? -, batia oito vezes com o casco no chão. Para elucidar o prodígio, formou-se uma comissão de cientistas, à qual se juntou igualmente um filósofo. A comissão concluiu que o cavalo não sabia calcular, mas era capaz de interpretar cambiantes subtis na expressão facial e corporal da pessoa que tinha à sua frente. Registava com uma sensibilidade apurada a tensão da atitude que o público presente espontaneamente adoptava por ocasião da pancada decisiva do casco no chão. Ao captar essa tensão perceptível, o cavalo deixava de bater com o casco. E, por isso, acertava sempre na resposta. », 

in No Enxame - Reflexões Sobre o Digital, Byung-Chul Han 

quinta-feira, 13 de abril de 2017

«Os Lobos» (1923) de Rino Lupo


Atenção aos militantes da brigada do politicamente correcto. Vi ontem na Cinemateca «Os Lobos» (1923), uma das obras mais importantes do cinema mudo português, e parece que o seu autor Rino Lupo compara os homens conquistadores a lobos e imagine-se (!) as mulheres a inocentes e fracas ovelhas. Mas para apaziguar eventuais fúrias digo-vos para reparem nos planos das encostas da Serra da Estrela, do sol e dos sinos, todos tão bonitos. E já agora, para se fixarem nos intertítulos poéticos que procuram habilmente disfarçar um certo moralismo da história. O João Bénard chamava-lhe :«a criação de uma poética à margem do argumento ou até contra ele». Fora de ironias, «Os Lobos» é um filme que tem algo de sobrenatural, mesmo no tratamento dos espaços. Desta forma ele cresce muito para além do que nele também se pode ver: um certo retrato de um Portugal humilde e de sentimento à flor da pele.

Post narcísico

Creio ser mais ou menos consensual que o modo de expressão individual nas redes sociais se destina menos a partilhar ideias e mais a obter, em primeira instância, e de forma mais ou menos instantânea, um concentrado de carinho, admiração e atenção. Digam-nos que somos bons, interessantes, perspicazes, atentos, e façam-no em público, para que toda a gente o possa ver e seguir o mesmo caminho. Neste trajecto diário de nos endeusarmos várias vezes ao dia, penso na delicadeza dos posts de homenagem quando alguém morre. Não defendo que as pessoas são hipócritas, acho mesmo que são momentos justos para relembrar alguém e que o fazemos de boa vontade e boas intenções. Contudo, apesar dessa boa vontade, o propósito narcísico do registo «expresso-me logo sou admirado» mantém-se. Talvez por isso seja tão delicado usarmos, ainda que inadvertidamente, a morte de outrem para capitalizarmos as nossas pequenas vaidades. Penso nisto e penso também que no meio do barulho, o silêncio talvez também seja uma forma possível de homenagem.

quarta-feira, 12 de abril de 2017

E quem sou? Também isso um mistério. Um leitor, um tipo que aos cinquenta e quatro ainda consegue usar (por maluquice e excitação face a uma manhã bonita de Verão) aquela parte exterior do pneu. Um tipo que há trinta e seis anos atrás, teve uma alegria súbita. Num barracão poeirento. Em Moleanos de Alcobaça. Preferia ficar nos sítios de pernoita aquando dos cortes de madeira. Poupava tempo. Havia desconforto é certo. Havia o dormir vestido, o banho apenas aos fins-de-semana. Havia o quase meio-quilo de toucinho assado e couves cozidas para o jantar… Mas havia também a liberdade de ler naquele ambiente improvável. Noite adentro, lendo o L’envers et le L’endroit de Camus sentia umas picadas estranhas. Incómodas. Pensando melhor no assunto, era natural. Ao lado, um barracão que servia de curral de cabras. Estava, este vosso criado, sujo,  dorido Soliplass carregado (e cravejado) de pulgas. Esse, sou eu. Ali, finalmente um leitor a quem nem as pulgas podiam obstar.

Here is a little forest



«There is another sky, 

Ever serene and fair, 

And there is another sunshine, 

Though it be darkness there;

Never mind faded forests, Austin,

Never mind silent fields -

Here is a little forest,

Whose leaf is ever green;

Here is a brighter garden, 

Where not a  frost has been;

In its unfading flowers

I hear the bright bee hum;

Prithee, my brother,

Into my garden come!» 


Emily Dickinson (1850)

terça-feira, 11 de abril de 2017

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Dino Risi


Hoje à noite na Cinemateca Portuguesa passa este capolavoro de Dino Risi. O meu texto para a pala de walsh aqui

domingo, 9 de abril de 2017

Árvore da Cinefilia #1 - Francisco Rocha


Alguns filmes passam pela nossa vida no momento certo. Com «Hardware» de Richard Stanley ou «Mark 13, o Exterminador», título para o mercado português, tive a sorte de me cruzar a meio da minha adolescência. Ainda não sabia o caminho que o cinema ia tomar na minha vida. Descobri-o num livro que era uma espécie de guia para todos os filmes que tinham saído em VHS, a minha primeira bíblia cinematográfica. As quatro estrelas dadas a um filme que nunca tinha ouvido falar chamaram-me a atenção, e, a partir desse mesmo momento, sem nunca o ter visto, tornou-se logo num dos meus filmes de culto. Passados 25 anos ainda o amo.

Francisco Rocha*

*Francisco Rocha é um nome que dispensa apresentações para qualquer cinéfilo português. Desde cedo começou a dar a ver filmes na Internet, contextualizados em ciclos temáticos e autorais. Actualmente, o seu blogue M2TM - My Two Thousand Movies é um dos mais importantes acervos nacionais sobre cinema, com milhares de obras legendadas em português. Francisco Rocha é portanto um artesão da programação de cinema, tendo construindo ao longo dos anos, de forma paciente e laboriosa, a sua própria Cinemateca portátil. E quem beneficia somos nós, a ele o meu obrigado.

Rubrica: Árvore da Cinefilia


Uma das coisas que sempre me fascinou na cinefilia é a sua pura anarquia. O amor, pouco ou nada se explica, e então quando as imagens se começam a mexer, irrequietas, as vozes logo se fundem com a natureza, os actores com o enquadramento, os gags com as lágrimas e por aí adiante. Depois, esse amor pelo cinema esvoaça por entre outros amores ou pela dureza da realidade, pelas nossas angústias do quotidiano, os sonhos, a dureza dos assentos, o sono da noite, a lista não tem fim. É afinal desses jump cuts, destes faux raccords que o espectador-Penélope vai fazendo e desfazendo uma qualquer relação com o cinema. Uma relação que não distingue necessariamente verdadeiro e falso, boas e más formas de filmar, estimulação intelectual e fetichismo rasteiro.

Há pouco menos de um ano postei aqui no blogue este plano de «Febre Tropical» (Sud Pralad) de Apichatpong Weerasethakul. Dizia que esta árvore representava um pouco do que era para mim o cinema do tailandês. Reevoco agora esta imagem para lançar uma nova rubrica aqui no Ordet, a que darei o nome de «Árvore da Cinefilia». Ao longo dos próximos meses, sempre ao domingo, convidarei um amigo cinéfilo a escolher um filme e a contar-nos porque razão esse filme ocupa um espaço especial na definição da relação que entretanto estabeleceu com o cinema. A ideia é irmos desvendando mais sobre as relações de cinefilia e que, com este acervo de textos que se irá constituir, observar de perto uma «grande e maravilhosa» árvore da cinefilia, algo que se constitua como um mapa de imagens e afectos, navegável, disponível a todos, feitos por todos. 

sábado, 8 de abril de 2017

Ultrapassar


«Il Sorpasso» é seguramente um filme que encontrou uma metáfora certeira no ritmo e na acção de ultrapassar para definir a sociedade italiana dos anos 60 a entrar na aceleração da concorrência e do capitalismo. Mas Risi, com especialização em psiquiatria, sabia bem que tinha ele próprio de «ultrapassar» a oposição rápido-lento, inibido-extrovertido se quisesse que as personagens de Gassman e Trintignant não ilustrassem uma qualquer lição moral que tivesse de fazer uma escolha entre o carpe diem e o live fast die young. Talvez por isso seja tão difícil de explicar o que sentimos pela voracidade inocente de Bruno ou também qual a verdadeira força trágica daquele Lancia Aurelia Sport e seus alegres «gritos de buzina». Um elemento mais pacífico, creio, é o de «ultrapassar» uma visão de drama e seriedade para o cinema italiano da época apenas assente no neo-realismo. Andar «mais rápido do que» os dramas realistas da pobreza, podia mostrar que a «commedia all'italiana» podia ser tão ou mais eficaz na capacidade de denunciar ou desmontar os traços de uma sociedade. É nesse aspecto que «Il Sorpasso» é uma comédia extraordinariamente séria. E talvez nem fossem precisos acidentes para nela vermos esse abismo que depois se literaliza.



Não há como sair indiferente de Suspiria. São tantas coisas a acontecer ao mesmo tempo (e nem sequer falo da narrativa propriamente dita) - as cores, a música, os gestos, a cenografia, a montagem demente - que o terror quase parece ficar «esquecido» no meio daquilo tudo. O choque, o susto, o coração apressado são sobretudo «crimes» do (e feitos com o) cinema nas mãos de Dario Argento. Se não é o meu filme de terror favorito, anda lá perto.

quinta-feira, 6 de abril de 2017

Em Helsínquia II


Em Helsínquia, as saunas são igrejas e as igrejas são saunas.

Em Helsínquia, a palavra «passado» tem sílabas germânicas e russas que ferem a língua.

Em Helsínquia, a água é límpida e nasce das fontes e das torneiras.

Em Helsínquia, as ruas vestem-se de linhas direitas e as pessoas são rectas despidas. Mas o inverso também é verdade.

Em Helsínquia, toda a gente bebe da barriga das árvores e cheira a cardamomo nas esquinas.

Em Helsínquia, os ursos e os alces têm de ter cuidado onde põem as patas.

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Em Helsínquia


Em Helsínquia, por entre a neve e o frio delicioso, os carrinhos de bebé são enormes e rolam pelos passeios enregelados.

Em Helsínquia, o vermelho vivo, o verde forte, o amarelo intenso são as cores dos bares, dos restaurantes, dos cantos. São as pinturas lutadoras contra os fogachos de sol. O sol vê-se como lebre parada no cimo do monte ao crepúsculo, ou candeeiro em extinção que se ilumina ao final da tarde, de repente, numa janela esquecida.

Em Helsínquia, as palavras são pesadas. As pessoas carregam-nas como cruzes nas ruas e dizem «desculpe», ou «com licença», com a certeza por detrás do olhar que o silêncio é dourado e muito mais quente.

Em Helsínquia, medita-se nas saunas, nos mergulhos, nos vapores, numa celebração do calor e da água que ascende ao céu, em devolução.

Em Helsínquia, as agendas de cada um têm marcado as datas importantes em que é preciso içar a bandeira. Subir, descer, sem tocar o chão ou a vertigem de uma altura impossível. Não se celebra um país, antes um espaço e uma altitude que sobe e desce consoante a respiração de uma comunidade.

 Em Helsínquia, os cães sentam-se no chão dos bares, satisfeitos, de língua de fora, junto dos seus donos. É a poesia que se escreve com a carne e com a pedra, directamente, uma poesia sem poema.

sábado, 1 de abril de 2017