A minha rua é toda esburacada. Há pedaços de alcatrão arrancados às mãos cheias pelo tempo, parece que fizeram desmaiar um prédio para fazer nascer outro e não há quem não tropece na estrada porque é tudo tão inclinado. Na minha rua o vento passeia, ligeiro, e há cactos gigantes e mesmo cobras. Juro: elas rastejam aos ziguezagues e são intermináveis. Os velhotes vêm passear os cãezinhos e as artroses, um há que arranja tapetes de Arraiolos, para quem estiver interessado. A minha rua é o meu ringue de patinagem, o meu circo de atracções que vê passar as estações: Verão, Outono, Inverno, Primavera. As folhinhas desfilam todas vaidosas por entre o habitual tetris de carros, essas envelhecidas máquinas a suspirar vapores e a suar óleo. Às vezes, quando joga o Benfica, não se ouve vivalma, só os uhhhh.... ahhhh... E quando é golo os pássaros piam e levantam voo, indiferentes. À noite não há pessoas e não há luzes na rua e tudo, parece, continua inclinado, esburacado, assim no breu à espera da claridade.
Para quando cá mudei desconfiei dos meus passos e da minha voz: chamar por ajuda, ver o mundo, sei lá eu. Entretanto, o tempo altercou-se com o alcatrão, as vozes das poucas pessoas fizeram-se erva e pó. Há um caminho secreto na minha rua que toda a gente conhece e que contorna o capim, um moinho e um gato preto, é uma entrada que dá para uma quinta, com camiões. Percorri umas quantas vezes esse caminho e quando chego ao fim volto para trás, há uma vizinha que espreita por detrás da roupa estendida, uma silva que me arranha o calcanhar e mais nada. Se querem saber não sei, não sei a partir de quando é que percebi que a minha rua dá para o outro lado da cidade, para o aberto. E que os buracos da minha rua sou eu todo esburacado, sem máquinas de alisar alcatrão, onde, por vezes, chove, e fica tudo intransitável, mas logo de seguida rebentam sementes e depois, claro, recomeça a Primavera.
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