sábado, 31 de julho de 2010
O feitiozinho de Luis Buñuel (III)
in My Last Breath - Luís Buñuel (tradução minha)
sexta-feira, 30 de julho de 2010
Do cânone ao caos
Não sei propriamente a resposta. Mas há em algo do que é hoje a prática de discussão do cinema - que começa muitas vezes em toda a blogosfera e demais plataformas digitais, meses, senão anos, antes dos filmes estrearem - uma pista de reflexão. A nova crítica cinematográfica tem sido um tema muito discutido sobretudo do ponto de vista dos lugares de legitimação. Os antigos, vêem-na como posição de total descrédito, os novos vêem-na como realidade que nem vale a pena discutir muito. É o que o há, com ou sem estatuto, em todo o esplendor do seu acesso à informação e, mais importante ainda, à opinião. A “nova crítica”, longe de ser o inferno como alguns o vêem, (ver o artigo de Paul Brunnick na Film Comment) ou o céu (ver este post do excepcional blog girish), o certo é que produz importantes transformações na forma de pensar as imagens e seu processo de integração na cultura contemporânea.
Das inúmeras perspectivas saliento duas que me parecem que podem ajudar a compreender o “dilema” Incepcion, multiplicável cada vez mais por inúmeras outras obras.
Do ponto de vista espacial, a abolição de fronteiras analógicas com a internet, permitiu, analogamente à explosão dos processos digitais no cinema, a multiplicação de espaços de opinião. Mais pessoas podem falar, pensar, escrever sobre cinema, sendo que já não existe um critério de legitimidade antes dado pelas publicações em papel. Agora, há por aí “raparigas do Ohio” a escrever sobre cinema mas é necessário encontrá-las. Não há, pois, uma diminuição da qualidade do que se pensa nem, ao invés, um aumento exponencial da mesma. Há apenas uma maior diluição e consequente necessidade de filtro. Para cada “rapariga de Ohio”, há sim 10 adolescentes de boné para quem o mudo ou o preto e branco no cinema são uma bizarria. Sabemos que dá trabalho filtrar. Ainda assim, parece-me que o reverso, a "mentalidadezinha" da escassez, era sobretudo comodista. Aliás, antes não significa que alguém tenha feito essa triagem. Como se refere no artigo de Brunnick, muitas vezes os lugares de proeminência crítica foram conseguidos por circunstâncias próximas do acaso. E isto leva-nos finalmente à referida questão da ordem da sociologia do espectador e seu “consenso tomateiro” adiantada por Luís Miguel Oliveira na sua critica a Incepcion. Este consenso explica-se, em meu entender, numa lógica de marketing (uma face visível é a aproximação a Matrix, ou a colocação do filme num imaginário perto da BD) que, para além de compreender o seu público-alvo, compreende precisamente a lógica de funcionamento dessa nova crítica cinematográfica. Se adiantámos que será necessário que se produzam filtros para separar o trigo do jóio de quem pode ou deve construir um discurso legitimador sobre as nossas imagens, pensamos: mas não será que o cânone instituído sobre a qualidade e valores maiores da sétima arte, está, como uma dúzia de outros cânones, a perder importância? Ou antes, a mudar de importância? Não é ele, cada vez mais um manifesto de impotência, um último reduto antes do caos? Uma bóia de segurança ao qual nos podemos agarrar? A questão é que, para estes adolescentes de boné, estes que me perdoem, a incorporação do cânone, em tudo o mais do que não seja mero conhecimento antropológico, é um movimento de estranhamento. E para mais, já não legitimador de arte nenhuma, e cada vez menos dos discursos que sobre esta se produzem.
A segunda questão têm a ver com o tempo.
A nova crítica produz também, em meu entender, uma modificação temporal na forma de discutir cinema. E aqui voltamos à questão inicial . Eu nunca vi Incepcion e, no entanto, não gosto dele porque sei que nele estão coisas com as quais não concordo, e que, de acordo com os meus critérios de qualidade do que deve ser um bom filme, ele a isso não corresponderá. Posso estar enganado? Sim posso. Mas não é provável. Mas então, com que instrumentos me dotou essa “nova crítica” que me permite fazer o mais injusto de todos os juízos: falar mal de uma coisa que não conheço? A. O. Scott num artigo sobre o filme no New York Times fala desta questão, desta onda sazonal de indignações que a propósito de certas obras nascem, muitos antes sequer destas verem a luz do dia. Como se só a ideia de um filme assim, representasse uma visão qualquer do que deve ser o mundo e neste, por extensão, as suas imagens e as suas histórias. Neste caso, haverá uma batalha ideológica entre viver analógico e viver digital? Entre uma forma que entretem uns e aborrece outros? Entre uma nova e uma velha crítica? Entre um cânone e um caos?
Seja como for há temporalmente uma aceleração na forma como as pessoas recebem os seus filmes e depois se manifestam. E ainda, diz Scott, numa inversão na forma de julgar o objecto artístico. Será possível que um filme seja uma obra-prima antes de ser visto, incorporado, analisado?
“What is odd about these questions, which shrewdly invite a second viewing, is that they seem to come at the end of the argument about “Inception” rather than at the beginning. Film culture on the Internet does not only speed up the story of a movie’s absorption of a movie into the cultural bloodstream but also reverses the sequence. Maybe my memory is fuzzy, or maybe I’m dreaming, but I think it used to be that “masterpiece” was the last word, the end of the discussion, rather than the starting point.
But in this case we end up with where we should have started, wondering what the movie is about, what it means, puzzling over symbols and plot points. It’s almost as if we’re all in a movie that’s running backward, like “Memento.” Which was totally overrated. Unless it was a masterpiece. I’m going to have to see it again”(...).
É provavelmente esta aceleração e inversão que fazem com que não goste de Incepcion sem nunca o ter visto . Ou talvez por ser representante de uma cultura “lenta". Ou talvez por gostar de bom cinema. Não sei.
quarta-feira, 28 de julho de 2010
A Espada e a Rosa de João Nicolau seleccionado para Veneza
John Akomfrah's The Nine Muses.
Noel Burch and Allan Sekula's The Forgotten Space.
Amit Dutta's Nainsukh.
Lluis Galter's Caracremada.
Giuseppe Gaudino and Isabella Sandri's Per questi stretti morire (ovvero cartografia di una passione).
José Luis Guerín Guest.
Laura Amelia Guzman and Isreal Cardenas's Jean Gentil.
Huang Wenhai's Reconstructing Faith.
Patrick Keiller's Robinson in Ruins.
Marianne Khoury's Zelal.
Kim Gok and Kim Sun's Anti Gas Skin.
Paul Morrissey's News from Nowhere.
Joao Nicolau's A Espada e a Rosa.
FJ Ossang's Dharma Guns.
Nicolas Pereda's Verano de Goliat.
Gianfranco Rosi's El Sicario Room 164.
Maher Abi Samra's When We Were Communists.
Pasquale Scimeca's Malavoglia.
Sion Sono's Cold Fish.
Twist emocional
terça-feira, 27 de julho de 2010
Buñuel: surrealizar para realizar
O primeiro, quiçá a curta-metragem mais famosa do mundo, é tido como obra precursora do cinema surrealista e deu a Buñuel, que filmava com o dinheiro da mãe, assim como a Dalí, com quem co-escreveu o argumento, entrada no panteão do movimento surrealista. Ora, é certo que ao recusar qualquer lógica causal entre as suas imagens, Dalí e Buñuel trouxeram ao cinema, com o “filme bomba”, como lhe chamaram, a dimensão psicanalítica, com particular preocupação pela descrição do sonho e de uma realidade por debaixo da realidade. No entanto, há mais. Há uma imagem que “cresceu”, se extrapolou desta divagação humorística e instintiva, dedicada contra o “cão andaluz”, Llorca, representante de antigos valores artísticos. Essa imagem foi a do olho a ser cortado por uma lâmina. Se este é plano de corte físico, literal, não é menos imagem de corte, ela mesma, ruptura com um olho preguiçoso. O corte é com um “once upon a time” apaziguador do título que antecede a cena. Mas é ainda, ou sobretudo, Buñuel a cortar o cinema em dois, apresentando-se.
Se Un Chien Andalou fez operar esse corte, fez também colar a Buñuel a expectativa do ser cineasta, e mais, a expectativa do que seria “o” cineasta surrealista. L’âge d’or que se lhe seguiu, segunda colaboração “surrealista” de Buñuel, esconde muitas histórias polémicas que o marcaram. Uma delas contava João Bénard da Costa que Dalí, quando regressou a Espanha após o retumbante sucesso de Un Chien Andalou, o pai lhe pôs as malas à porta e o expulsou de casa porque ele se preparava para expôr um quadro que dava pelo seguinte nome: “cuspo alegremente no cadáver de minha mãe”. Seja por causa desta irreverência levada ao extremo como tique surrealista, seja por mero choque de egos, desta vez a colaboração entre o pintor e o cineasta espanhol foi mais ténue, tendo só em casos excepcionais, Buñuel acatado as sugestões de Dali. L’âge D’or é um filme que, com as suas sequências narrativas bastante mais marcadas – a chegada da burguesia ante a recepção dos bandidos, o casal que quer consumar a sua relação amorosa e carnal, o jantar burguês e a orgia inspirada em Marquês de Sade – possui um outro tipo de vínculo ao movimento surrealista. Já não há a mera rejeição causal entre imagens mas a utilização do “método de paranóia crítica”, ou seja, a capacidade de ir ao subconsciente e o articular. Venha daqui ou doutro lado qualquer a mecânica narrativa de L’âge D’or, o certo é que nele, o que é surreal (o ataque ao sentimentalismo burguês com o pontapé no cego e no cãozinho, o sonho, o anti-clericalismo) é-o ainda mais buñueliano. Há em L’âge D’or uma urgência de viver, sobretudo no seu casal de “amantes impossíveis” que é, reconhecidamente, já, a preocupação pela defesa do instinto, da carne. Esse lado de luta à repressão sexual deu à história do surrealismo outra das suas imagens (sem que esta pertença propriamente ao núcleo das suas preocupações formais): Lya Lys a chupar o pé da estátua consumida de desejo sexual. Depois, surgiu como metáfora histórica o episódio que se seguiu à estreia do filme em Paris. Falo da destruição do estúdio 28 por uma multidão conservadora de direita que entre outras coisas não suportou que Buñuel tivesse colocado uma das personagens, em clara encarnação de Jesus Cristo, a sair da orgia final. E o curioso, ou melhor, a metáfora é que para que estas “imagens novas” pudessem percorrer o seu caminho, outras tiveram de ser sacrificadas – nesse ataque algumas das obras de Man Ray, Dalí, Max Ernst, Hans Arp expostas no estúdio foram destruídas para sempre.
Após um período de transformação no interior do movimento surrealista, Buñuel, desencantado com o artifício burguês vigente no mesmo resolve sair e logo a seguir filma Las Hurdes, documentário sobre esta região espanhola que nas vésperas da Guerra Civil era uma das mas pobres da Europa, com os seus habitantes a sobreviver em cenário de horror. Como documentário, ou “ensaio sobre geografia humana” como o narrador o descreve, Las Hurdes pouco parece ter a ver com as primeiras fases do surrealismo e antes com uma das suas etapas finais, caracterizada por uma maior preocupação com a acção societária. E a estratégia de Buñuel é no filme inverter os termos: o que é real, é-o tão escandalosamente, que parece precisamente… surreal, fora de mundo. Neste, outra imagem, entre várias, a derradeira imagem surrealista de Buñuel, sobressai: o plano das crianças sub-nutridas na escola de Aceitunilla. Imagem que viria a ganhar outro corpo, anos mais tarde, em Los Olvidados (1950).
O que provam estas três imagens que Buñuel “deu” ao surrealismo é que aquele encontrou neste um abrigo estético que lhe permitiu, filme a filme, fincar âncora no real. Surrealizar primeiro, alargando o espectro para comprimir depois, e ficar apenas com essa máquina fuziladora de valores burgueses, fervilhante na afirmação de desejos insaciados que é o seu cinema.
domingo, 25 de julho de 2010
Sans Soleil - Chris. Marker (1983)
Numa estrutura musical e epistolar, uma mulher lê e comenta cartas que recebeu de Sandor Krasna, um cameraman freelancer, alter-ego que se crê ficcional e “invisível” do autor. “Il écrivait: «Après quelques tours du monde, seule la banalité m’intéresse encore. Je l’ai traquée pendant ce voyage avec l’acharnement d’un chasseur de primes»”. É precisamente entre esta caça à banalidade nas suas viagens pelo Japão, Cabo Verde, Guiné-Bissau e a sua organização posterior em memória afectiva e (re)construção da História, que Sans Soleil se concebe simultaneamente como filme labirintíntico e ensaio antropológico.
Começa-se então a captar a importância da obra no espectro da criação de Chris. Marker. Como é sabido, muito da afirmação do cineasta francês fez-se sobretudo a partir dos anos 60, no entusiasmante espírito do “cinema directo” (nunca ouvirão Marker proferir a expressão “cinéma verité”) que se traduzia sobretudo em novas formas de filmar, num novo posicionamento de autores como Varda ou da dupla Rouch/Morin, ante o mundo e ante a “máquina”. É curioso notar que resulta deste período o primeiro movimento de apagamento do artista Marker perante a sua obra. Falamos das consequências históricas que resultam de filmar debaixo da “gigantesca sombra” que se chamava Nouvelle Vague e de pertencer a um outro grupo de cineastas – os Left Bank Directors.
Para encerrar este breve excurso sobre a importância relacional deste documentário na carreira de Chris.Marker saliente-se um aspecto por vezes esquecido: a ficção científica. Krasnor refere numa das suas cartas que o seu amigo japonês Hayao Yamaneko lhe sugeriu que se é impossível modificar as imagens do presente, transforme-se o passado. Essa mutação é visível na distorção das imagens do real e tem um nome: a Zona (em homenagem à ficção racionalista de Stalker, de Tarkovsky). Há uma firme convicção de que é nessa Zona, nessa bolsa impermeável ao espaço convencional e à cronologia, que as verdadeiras memórias do passado ultrapassam a acção transformadora do tempo e adquirem a sua verdade. Recuando atrás mais de uma vintena de anos, até La Jetée, percebemos que o lado ficcional, místico, do cinema de Marker não foi tido, como muito se escreveu, como um “acidente de percurso” de um documentarista. Antes se assiste, em várias obras posteriores, à incorporação dessa “ficção” numa forma de conceber e documentar a realidade, hibridizando a tal ponto os seus filmes que já não é certo saber se é a ficção científica um prolongamento do lado documental ou viceversa.
Mas não nos esqueçamos que esta é uma obra fascinante por direito próprio. Filmado em várias partes do mundo, Sans Soleil é um falso filme geográfico. É antes o tempo a dimensão que importa trabalhar. Como se diz, “(...) au XIXe siècle l’humanité avait reglé ses comptes avec l’espace, et que l’enjeu du XXe était la coahabitacion des temps”. Desde as primeiras frases da belíssima voz off de Florence Delay que as palavras convocam uma torrente demencial de imagens. Estas são colocadas num “tempo infernal”, onde a montagem como geografia criativa, cola argumentos, associações afectivas, e outras quaisquer “choses qui font battre le coeur”. É nesse vórtice temporal que Sans Soleil é uma meditação sobre tudo, sobre a viagem, o consumismo, as sociedades africanas, a metrópole de Tokyo, a nostalgia, a televisão, o cansaço, a história, ou as memórias impossíveis de Vertigo, de Alfred Hitchcock. E nós? Que fazer perante este tudo, apresentado em “ataque” ao intelecto e à percepção? Resta-nos, quem sabe, entrar calmamente na Zona, a Zona do espectador, onde por momentos o voyeur tomará o lugar do voyeurizado. E essa talvez seja uma outra “imagem de felicidade”.
(Junho de 2008, Cinemateca Portuguesa, 35 ANOS DO ar.co: A IMAGEM FIXA NA IMAGEM EM MOVIMENTO)
sábado, 24 de julho de 2010
O feitiozinho de Luis Buñuel (II)
Sr. Dn. Juan Ramón Jiménez
Madrid, febrero de 1929
Nuestro distinguido amigo: Nos creemos en el deber de decirle -sí, desinteresadamente- que su obra nos repugna profundamente por inmoral, por histérica, por cadavérica, por arbitraria.
Especialmente:
¡¡ MERDE !!
para su Platero y yo, para su fácil y mal intencionado Platero y yo, el burro menos burro, el burro más odioso con que nos hemos tropezado.
Y para V., para su funesta actuación también:
¡¡¡¡MIERDA!!!!
Sinceramente,
.......................................................... LUIS BUÑUEL / SALVADOR DALÍ
sexta-feira, 23 de julho de 2010
Ghost Filmmaking
Enquanto seguimos a travessia até às origens do Danúbio, Stiegler fala da técnica, o fogo que Prometeu deu aos homens.
Ora:
a) se a técnica é, como diz Stiegler (não sou eu), suporte de memória do ser humano, a capacidade de construir as suas próteses/objectos e com eles passar a experiência de geração em geração, então:
b) o cinema será, por definição, a memória de uma memória.
Se o cinema é memória de uma memória, The Ghost Writer no seu pseudo - ambiente claustrofóbico, sofisticada solidão e no previsível e odioso saudosismo do seu último plano, não será mais do que isto:
c) a memória de uma memória de uma memória.
Polansky está livre e isso faz mais pelo seu cinema do que uma rememoração ao cubo do que foi, é, ser um bom cineasta.
E é por isto que não gosto de The Ghost Writer.
quinta-feira, 22 de julho de 2010
quarta-feira, 21 de julho de 2010
O feitiozinho de Luis Buñuel (I)
"There is drama for those who like this kind of flamenco drama; there is the
spirit of the classical ballad for those who want to go on with the classical
ballad century after century; there are too some magnificent and very new
images, but they are few and combined with a narrative I find insufferable
and which keeps Spanish beds full of menstrual blood(...)"
in A Companion to Luis Buñuel - Gwynne Edwards
terça-feira, 20 de julho de 2010
Masculin, Féminin - Jean-Luc Godard (1966)
O ano de 1965, prolífico, aliás como o viriam a ser todos os da década para Godard, viu o produtor Anatole Dauman encomendar um filme de tom “erótico” a Godard para servir de acompanhamento ao relançamento de um filme de Astruc. Influências iniciais a este filme, propostas pelo produtor, foram: A FILOSOFIA NA ALCOVA de Sade e o conto LE SIGNE de Maupassant, conto que Godard já tinha adaptado em 1955, uma curta de 10 minutos rodada em 16mm chamada UNE FEMME COQUETTE. Godard decidiu abandonar o texto de Sade e juntar outro conto de Maupassant, LA FEMME DE PAUL. Estas fontes combinaram-se com a vontade do cineasta fazer um filme sobre jovens de esquerda e jovens de direita. A ideia que tinha tido inicialmente era uma mulher com influências revolucionárias e um jovem permeável às indústrias de consumo. Ainda que sem provas palpáveis, o recente divórcio de Ana Karina e o exercício de dura redenção que foi PIERROT, LE FOU, erá provavelmente estado na origem da ideia de Godard ter trocado os papéis. Assim, em MASCULIN, FÉMININ, Paul (Léaud) é o jovem de esquerda e Madeleine (Chantal Goya) a rapariga capitalista.
E desse fundo erótico, sobrou, ou antes, cresceu, uma reflexão de género que é, ela própria, determinada pelo comentário crítico a uma sociedade política francesa mas também ocidental. A guerra do Vietname, a beat generation, os métodos contraceptivos, as eleições francesas, os filhos perdidos entre “Marx e a Coca-Cola”. Este retrato surge na sociedade francesa como presente envenenado. Se por um lado era uma afirmação de vitalidade e manifesto de identificação com uma geração de jovens intelectuais franceses que era crítica do establishment, que era “à part”; por outro, o veneno vinha da ironia de Godard, das raparigas desmioladas e dos rapazes agitados mas inconsequentes (Philippe Garrel, jovem à data não se terá revisto nesta “acusação” e terá rejeitado o filme). Mas parece-me que ao olhar de hoje, essa ironia bem-disposta, sinal de maior juventude de todo o filme, é a razão de MASCULIN, FÉMININ: 15 FAITS PRÉCIS continuar a ser um dos filmes mais bem-amados de Godard de entre os seus filmes mais bem-amados que reconstruíram os filmes e género de Hollywood à luz da critica vigente ao esprit du temps e liberdade poética e estilística.
Mas comecei por advertir quando aos perigos de nos perdermos na leitura intelectual e história(s) de masculino feminino de Godard. É que essa ironia, esse comentário político, essa visão sociológica do que é ser masculino e do que é ser feminino, convergem num único facto preciso: a conversão do mundo, todo, febrilhante, numa visão ímpar do cinema. A atestá-lo, três exemplos.
Um. Os suicídios/homicídios de MASCULIN, FÉMININ. Os “mortos” de uma revolução ideológica, funcionam como uma espécie de punch line para um espaço performativo que é a França de 66 e a câmara de Godard nessa França de 66.
Dois. A cena em que Paul fala com o seu amigo Robert na lavandaria sobre a sensação de estar a ser perseguido, jump cuts utilizados e... não importa por quem. Apenas a sensação.
Três. A conversão de Paul repórter em realizador de inquéritos. Godard, pondo a câmara de um só lado, num olhar “veja-se a si próprio e como se apequena” criou escola no documentário e popularizou a forma dos inquéritos de rua nos programas de televisão. Já na recusa do campo contra campo no início do filme, Godard mostra menos um diálogo entre um homem e uma mulher e mais uma confissão entre um e outro. Uma confissão que tem de pedir para que se olhem nos olhos. Um do outro, não nos nossos, diz o cinema.
Aqui fica o ilustrativo “Dialogue Avec un Produit de Consommation”, uma das melhores cenas do filme.
segunda-feira, 19 de julho de 2010
ele bem avisou...
(...) Faire un film, c'est donc montrer certaines choses, c'est en même temps, et par la même opération, les montrer d'un certain biais ; ces deux actes étant rigoureusement indissociables. De même qu'il ne peut y avoir d'absolu de la mise en scène, car il n'y a pas de mise en scène dans l'absolu, de même le cinéma ne sera jamais un "langage" : les rapports du signe au signifié n'ont aucun cours ici, et n'aboutissent qu'à d'aussi tristes hérésies que la petite Zazie. Toute approche du fait cinématographique qui entreprend de substituer l'addition à la synthèse, l'analyse à l'unité, nous renvoie aussitôt à une rhétorique d'images qui n'a pas plus à voir avec le fait cinématographique que le dessin industriel avec le fait pictural; (...)
in De L'abjection- Jacques Rivette (1961)
domingo, 18 de julho de 2010
Professione:reporter - Michelangelo Antonioni (1975)
Longe dessa verdade, PROFESSIONE: REPORTER conta outra vez como tema assombrado da personalidade fílmica do seu autor, embora também fruto de contemporaneidade cinematográfica pós neo-realista e nouvelle vague a que deu forma, uma história de malaise e alienação. Com o aparato hollywodesco sempre na sombra e uma rara liberdade de actuação, Antonioni escolheu a dedo os actores, particularmente a dupla Jack Nicholson/ Marie Schneider e partiu para o deserto. E da sua viagem (deles) pelo mundo, numa afirmação de identidades transitórias que passa no lado de cá para o de lá da câmara, nasceu, à data, um sucesso moderado, quer comercial, quer crítico.
Jack Nicholson, também ele apanhado numa fase da vida de mudança da sua dramatis personae - passando da energia e rudeza viril de CHINATOWN ou FIVE EASY PIECES, sucessos anteriores, à aura negra e cerebral de THE SHINING e ONE FLEW OVER THE CUCKOO'S NEST)- encarna agora David Locke, um repórter televisivo que investiga os movimentos armados terroristas num país do norte africano. Quando um conhecido do quarto ao lado morre, Locke, sem grande reflexão, decide fugir da sua vida, mulher, emprego, responsabilidades, assumindo a identidade do falecido, transmitindo a “morte” para si próprio. E desta fuga identitária, que assume na visão de Antonioni uma dimensão de road movie calmo, melancólico e surpreendentemente cosmopolita (alguns dos seus melhores momentos são no sul de Espanha ou em Munique), muito do que se conta são as palavras não ditas de Jack Nicholson, os seus gestos densamente minimais, a sua postura mansa de ebulição intelectual. Muito da grandeza de PROFESSIONE: REPORTER é sobretudo a superior afirmação, por parte de um actor sanguíneo, de algo que nunca teria sido e certamente nunca voltou a ser, um corpo endemoinhado por uma entidade, uma alienação difícil de explicar.
Da fuga do jornalista à sua perseguição pela Europa, por parte da mulher que deixou, - por ela já não ser aquilo que ele era, como ele que já não queria ser aquilo que é-, parte da correria lenta por casas rústicas, hotéis encaixados na paisagem e linhas do infinito traçadas por estradas percorridas, justifica-se com uma nova postura de vida activa. Ou por outras palavras, o seu novo eu, o assumido com a morte de Robertson (Charles Mulvehill), está mais fincado na vida do que ele estava, tendo assim que correr e abandonar o alheamento e observação passiva próprias do “seu” jornalismo, pouco inquisitivo.
Como fosse a insatisfação identitária uma corrida à volta da própria cauda (como confessa o protagonista, debaixo de uma árvore à sua nova namorada, “que se sente só um”, apesar das muitas identidades), PROFESSIONE: REPORTER também é, apesar de aparentar o seu contrário, uma obra de imobilidade, uma viagem interior, labirinto emocional kafkiano, que justifica uma circularidade e pontos da contacto no trajecto dos personagens. Claro que, este tipo de leituras metafísicas, e sobretudo metapsíquicas, reconhecidamente o “colestrol” do cinema de Antonioni, verdadeiros locais decadentes de chegada, são infinitamente mais débeis do que estes corpos em fuga(s) que palminham esta Europa estranhamente serena. Ainda assim, as diversas leituras que carrega PROFESSIONE: REPORTER são certamente mais justificadas, ou não fosse, em momento da sua reposição, anunciada a obra no poster lançado entre nós, como a mais narrativa das viagens de Antonioni. E é essa dose de narratividade, esses traços de história, os elementos menos geridos. Demasiadamente marcados e evidentes, reenviam o espectador a um cinema que não é bem o de Antonioni, ou pelo menos, no qual também ele se sente um viajante, como indica o seu título em linha inglesa, THE PASSENGER.
Passagem/busca essas, que terminam numa ascensão à “Glória”, com vista larga, mas sempre gradeada, para uma vida serena e contraditoriamente cómica. Como se a tarde, que passa lenta com uma criança que atira pedras a um idoso abrigado do calor, ou um aprendiz a condutor que vai e vem, fizessem sentido. E fazem.
sábado, 17 de julho de 2010
Le Texte Introuvable
in The Unattainable Text - Raymond Bellour
sexta-feira, 16 de julho de 2010
Picnic at Hanging Rock - Peter Weir (1975)
quinta-feira, 15 de julho de 2010
quarta-feira, 14 de julho de 2010
A Hora do Lobo - Ingmar Bergman (1968)
terça-feira, 13 de julho de 2010
Cem Mil Cigarros
Notre souffrance serait intolérable si nous ne pouvions la considérer comme une maladie passagère et sentimentale. Nos retrouvailles embelliront notre vie pour au moins trente ans. De mon côté, je prends une bonne gorgée de jeunesse, je reviendrai rempli d'amour et de forces ! Pendant le travail un anniversaire, mon anniversaire fut l'occasion d'une longue pensée pour toi. Cette lettre parviendra-t-elle à temps pour ton anniversaire? J'aurais voulu t'offrir 100 000 cigarettes blondes, douze robes des grands couturiers, l'appartement de la rue de Seine, une automobile, la petite maison de la forêt de Compiègne, celle de Belle-Isle et un petit bouquet à quatre sous. En mon absence achète toujours les fleurs, je te les rembourserai. Le reste, je te le promets pour plus tard.
Mais avant toute chose bois une bouteille de bon vin et pense à moi. J'espère que nos amis ne te laisseront pas seule ce jour. Je les remercie de leur dévouement et de leur courage. J'ai reçu il y a une huitaine de jours un paquet de J.-L. Barrault. Embrasse-le ainsi que Madeleine Renaud, ce paquet me prouve que ma lettre est arrivée. Je n'ai pas reçu de réponse, je l'attends chaque jour. Embrasse toute la famille, Lucienne, Tante Juliette, Georges. Si tu rencontres le frère de Passeur, adresse-lui toutes mes amitiés et demande- lui s'il ne connaît personne qui puisse te venir en aide. Que deviennent mes livres à l'impression? J'ai beaucoup d'idées de poèmes et de romans. Je regrette de n'avoir ni la liberté ni le temps de les écrire Tu peux cependant dire à Gallimard que dans les trois mois qui suivront mon retour, il recevra le manuscrit d'un roman d'amour d'un genre tout nouveau. Je termine cette lettre pour aujourd'hui.
Aujourd'hui 15 juillet, je reçois quatre lettres, de Barrault, de Julia, du Dr Benet et de Daniel. Remercie-les et excuse-moi de ne pas répondre. Je n'ai droit qu'à une lettre par mois. Toujours rien de ta main, mais ils me donnent des nouvelles de toi; ce sera pour la prochaine fois. J'espère que cette lettre est notre vie a venir. Mon amour, je t'embrasse aussi tendrement que l'honorabilité l'admet dans une lettre qui passera par la censure. Mille baisers. As-tu reçu le coffret que j'ai envoyé a l'hôtel de Compiègne?"
Carta do poeta surrealista Robert Desnos à sua mulher Youki escrita desde Auschwitz. Menos de um ano depois viria a falecer no campo de concentração de Theresienstadt, Checoslováquia.
segunda-feira, 12 de julho de 2010
Cuidado com os arrotos que isso pode ser da antropologia
General Sebastiano in Five Graves to Cairo - Billy Wilder (1943)
domingo, 11 de julho de 2010
Pelo serviço público português, pelo cinema
Num momento da minha vida em que por motivos profissionais me encontro em Amesterdão, a falha cívica de não ter um serviço público nacional com interesse na sétima arte já me interessou mais. Há tacanhices que, agora à distância confortável de milhares de quilómetros, me parecem irremediáveis. No entanto, decidi juntar-me ao movimento sobretudo por aquilo que Miguel Domingues do In a Lonely Place, outros dos peticionários à data, aponta como o principal defeito da RTP2 (e porque não de todo o serviço público?): o de considerar toda a sua própria actividade como "positiva". De acordo. Negativa não será. Mas isso chega?
Vivemos na civilização da imagem, é um facto. E, pela sua fácil acessibilidade, elas, as imagens, parecem estar todas ao mesmo nível, chegar-nos aos olhos com a mesma qualidade. O que se assacava ao “lixo televisivo” multiplica-se agora por inúmeros outros formatos e ecrãs. Se todos temos que medir as nossas palavras em sociedade, porque é que não precisamos também de “medir as nossas imagens”?
É aqui que um serviço público, enquanto privilegiada plataforma de comunicação social, tem de assumir essa educação, esse estímulo: é preciso que este ensine as pessoas a ler as imagens e a definir o seu alcance, o seu poder.
O facto de tudo estar acessível noutros formatos e da internet ser o local privilegiado de acesso a conteúdos audiovisuais, não isenta o serviço público de orientar as pessoas, com critérios que não são, não podem ser, (valha-nos Deus), o da concorrência económica.
Chris Anderson, especialista em new media e autor de “Free: The Future of Radical Price” (livro sobre a era do acesso gratuito de quase tudo pela internet), refere que “se no passado interessava procurar, no futuro é encontrar e seleccionar que é preciso”. É esta tarefa de filtro, de ajuda à selecção, de estímulo, que os responsáveis pela exibição cinematográfica em espaços públicos têm de tomar como principal norte da sua actuação.
É contudo verdade que há cada vez menos pessoas a ver cinema na televisão. Os filmes estão noutros sítios, noutros formatos. Mas aqui é preciso ser inteligente. Se os filmes são grátis, ou de fácil acesso, porque não dar ao espectador aquilo que ele não consegue ir buscar sozinho? Isto é, acompanhamento, contextualização, critério nas escolhas, interacção, etc, etc. Aliás, essas foram as principais razões do sucesso de programas televisivos dedicados ao cinema como “5 noites, 5 filmes”, ou Fuori orario de Enrico Ghezzi em Itália.
Por tudo isto, paremos de nos enganar a nós próprios sobre o serviço público de “excelência” que temos, que é inventivo, que faz o que pode, que é alternativa. Isso é negar o óbvio: o serviço público em Portugal não tem critérios aceitáveis de qualidade e instrução.
É necessário sim conceber um projecto sério, criativo, coerente, que, embora tendo em conta as claras limitações económicas inerentes à gestão de um serviço público de um país pobre como o nosso, leve a sério a PROMOÇÃO, o ENSINO, o AMOR pelo cinema e audiovisual.
Se estiverem interessados em contribuir para mudar este panorama desolador juntem-se à nossa petição, comentando aqui, promovendo nos vossos espaços ou enviando um mail com nome completo, idade, mail, local de residência e mais o que quiserem para peticaortp2@hotmail.com. O nosso objectivo é criarmos uma espécie de mailing list para lançar a petição num futuro próximo. Juntos vamos mudar isto.
sábado, 10 de julho de 2010
oferta+procura+magia
-Creio que está na hora de beber um copinho.
E, depois de beber e olhar para o pobre professor chileno com um olhar malicioso de caçador, retomava, com mais ímpeto ainda se possível, o seu canto. Depois desaparecia engolido pela cratera listada de vermelho, ou pela latrina listada de vermelho, e Amalfitano ficava sozinho e não se atrevia a olhar pelo buraco, pelo que não lhe restava outro remédio senão acordar."
in 2666 - Roberto Bolaño
sexta-feira, 9 de julho de 2010
Parados no Tempo
Se esta era uma fórmula que vendia (e que mais há a fazer para uma geração de storytellers em perdição do que narrar o supremo acto do seu desaparecimento?), também é verdade que estes eram os momentos que o cinema tinha para si, para reflectir sobre a sua condição. Seja ou não por ser o seu penúltimo filme, Fedora de Billy Wilder é, além da reflexão sobre a condição atemporal do estatuto de star, um lamento mais horrorizante do que nostálgico (com ecos em Poe ou mesmo no fabuloso Les Yeux Sans Visage de Georges Franju) sobre a nova face do cinema.
A “inabilidade” em gerir a informação nos dois enormes flashbacks que entrecortam o enterro da protagonista Fedora (o primeiro a mostrar o que se passou, o segundo a explicar como se passou), a colagem de temas antigos de Wilder (o núcleo de Sunset Boulevard mas também a Europa palco da libertagem e segredo de Avanti!), o excesso do comentário à pele sob um mundo em perdição, fazem de Fedora um dos filmes menos amados do cineasta americano.
Tudo isto é verdade em relação a Fedora. E é por isso que se trata de uma obra-prima admirável. A partir do momento em que o espectador já desvendou o mistério da morte de Fedora, sensivelmente a meio do filme, ainda nos sobra a outra metade, ilustrativa, que lida com o "como", sempre mais difícil de filmar.
E, por fim, esta é uma história de desfigurações. Se é verdade que uma mulher só se desfigura ao cometer suicídio quando “já não vive no seu corpo”, não é menos verdade que a desfiguração de uma star é, antes que a destruição de um corpo, a destruição de uma ideia.