terça-feira, 6 de julho de 2010

Linha Ténue

The Thin Blue Line (1988) figura hoje por certo como a mais célebre obra do documentarista norte-americano Errol Morris.

Tudo começou com a máquina do cinema a ser posta em movimento na direcção errada:

-o cineasta filmava um documentário sobre James Grigson, um psiquiatra forense com a alcunha de Doctor Death que havia testemunhado até à data em mais de 100 casos dos quais resultaram outras tantas condenações dos arguidos à morte. Numa das entrevistas, ouviu Griegson testemunhar sobre Randall Addams, um jovem de 28 anos que em Novembro de 1976 fora acusado de homicídio de um polícia. Dr. Death apelou então à sua condenação à morte, claro, falando da sua personalidade maléfica e como era um erro mantê-lo vivo. Errol não acreditou na culpabilidade de Randall e daí o citado documentário. Nos próximos tempos começou a investigar este caso que tinha na prisão e a aguardar execução um possível inocente. Em liberdade, uma muito duvidosa testemunha de acusação/suspeito, um jovem de 16 anos, David Harris, a quem pertencia a arma do crime e que supostamente seguia na mesma viatura com Randall quando foram mandados parar pela polícia e se deu o homicídio.

A partir daqui The Thin Blue Line dispensa apresentações, não lhe faltando motivos para entrar na história do cinema. Combinando sequências de entrevistas aos intervenientes com cenas de reconstituição dos principais acontecimentos daquela noite (reconstituições dramáticas que a partir daí se tornaram um marco no documentarismo), Morris constrói um documentário tenso onde o espectador não sabe, até ao desfecho final, quem cometeu na realidade o crime. Terá sido essa a chave, dir-se-ia ficcional, com a misteriosa banda sonora de Phillip Glass a sublinhar essa dimensão enigmática, que lhe valeu notório sucesso comercial.. E não fosse ter sido considerado um filme de ficção pela academia e teria sido forte candidato a vencer o óscar de melhor documentário naquele ano.

Mas o melhor ainda estava para vir. Um ano após o lançamento do filme, Randall é libertado da prisão por acção directa das teorias expostas no documentário. Dir-se-ia que o sonho de qualquer documentarista, de lutar pela mudança de um mundo mais justo, tinha aqui face bem visível. Os conflitos com o cineasta pelos direitos da história de vida de Randall arrastaram-se após a saída deste da prisão. Por todos estes motivos, The Thin Blue Line está rodeado de polémica e de elementos de reflexão que por si só exigem um visionamento.

Mas, uma vez digeridos os fait divers, o que fica mesmo é essa pequena linha divisória, essa “thin blue line”, expressão adaptada de um poema de Rudyard Kipling e que aqui terá surgido em tribunal da boca do advogado do Ministério Público para ilustrar a fina separação entre a sociedade e anarquia. Diríamos que a linha ténue de The Thin Blue Line é entre ficção e documentário, como hoje muito em voga, mas aqui com a divisão entre o whodunnnit e suspense ficcionais e um reverenciado selo documental. Mas o que espanta mesmo mesmo é a integridade, o recuo, de Errol Morris em ambos os registos. A ficção nunca é mais do que suporte ou inócua reconstituição. A documentar, apesar de nunca esconder o seu lado, Morris mostra também decoro invejável, com diferentes pessoas a ser-lhes dado o mesmo espaço: aqueles planos bidimensionais perversos, palcos para as histórias de cada um. Palcos que se vão encolhendo, apertando, para alguns desses intervenientes ante o NOSSO olhar moral à medida que sabemos mais do que verdadeiramente de passou.

Morris, que define o seu filme como um "non fiction twilight zone episode", não acredita que tenha havido teoria da conspiração para se incriminar um inocente, mas sim que era mais conveniente para todas as partes envolvidas que aquele tivesse sido o desfecho final. Que a máquina da justiça foi simplesmente posta em movimento na direcção errada e que depois foi já muito difícil pará-la. Felizmente com o cinema é diferente.

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