sábado, 10 de julho de 2010

oferta+procura+magia

"Naquela noite, enquanto as palavras altissonantes do jovem Guerra ainda ecoavam no fundo do seu cérebro, Amalfitano sonhou que via aparecer num pátio de mármore cor-de-rosa o último filósofo comunista do século XX. Falava em russo. Ou melhor dizendo: cantava uma canção em russo enquanto o seu corpanzil se deslocava, aos esses, em direcção a um conjunto de majólicas listadas de vermelho intenso que sobressaía no plano regular do pátio como uma espécie de cratera ou latrina. O último filósofo comunista estava vestido com um fato escuro e gravata azul-celeste e tinha o cabelo grisalho. Embora desse a impressão de ir cair a qualquer momento, mantinha-se milagrosamente de pé. A canção nem sempre era a mesma, pois às vezes intercalava palavras em francês ou inglês que pertenciam a outras canções, baladas de música pop ou tangos, melodias que celebravam a embriaguez ou o amor. No entanto essas interrupções eram breves e esporádicas e não demorava muito a retomar o fio condutor da canção original, em russo, cujas palavras Amalfitano não entendia (embora nos sonhos, tal como nos Evangelhos, uma pessoa costume ter o dom das línguas), mas que ele entuía serem tristíssimas, a narração ou as queixas de um barqueiro do Volga que navega toda a noite e se lamenta à Lua do triste destino dos homens, que têm de nascer e morrer. Quando o último filósofo do comunismo já estava finalmente a chegar à cratera ou latrina, Amalfitano descobria com estupefacção que se tratava nem mais nem menos de Boris Ieltsin. É este o último filósofo do comunismo? Em que espécie de louco me estou a transformar se sou capaz de sonhar disparates? O sonho, contudo, estava em paz com o espírito de Amalfitano. Não era um pesadelo. Além disso, proporcionava-lhe uma espécie de bem-estar leve como uma pena. Então Boris Ieltsin olhava para Amalfitano com curiosidade, como se fosse Amalfitano a irromper no seu sonho e não ele no sonho de Amalfitano. E dizia-lhe: escuta as minhas palavras com atenção, camarada. Vou explicar-te qual é a terceira perna da mesa humana. Eu vou explicar-te. E depois deixa-me em paz. A vida é procura e oferta, ou oferta e procura, tudo se limita a isso, mas assim não se pode viver. É necessária uma terceira perna para que a mesa não caia nas lixeiras da História, que por sua vez está permanentemente a desmoronar-se nas lixeiras do vazio. Por isso, toma nota. A equação é esta: oferta+procura+magia. E o que é a magia? Magia é épica e também é sexo, e bruma dionisíaca e jogo. E depois Ieltsin sentava-se na cratera ou latrina, mostrava a Amalfitano os dedos que lhe faltavam e falava da sua infância, e dos Urales, e da Sibéria, e de um tigre branco que errava pelos infinitos espaços enevoados. Seguidamente tirava uma garrafa de vodka da algiveira e dizia:

-Creio que está na hora de beber um copinho.

E, depois de beber e olhar para o pobre professor chileno com um olhar malicioso de caçador, retomava, com mais ímpeto ainda se possível, o seu canto. Depois desaparecia engolido pela cratera listada de vermelho, ou pela latrina listada de vermelho, e Amalfitano ficava sozinho e não se atrevia a olhar pelo buraco, pelo que não lhe restava outro remédio senão acordar."

in 2666 - Roberto Bolaño

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