Um dos dilemas mais interessantes levantados por este novo filme de Tarantino talvez seja ilustrado pela ideia de sombra, mais até do que a tão propalada noção de duplo. É verdade que filmes como Inglourious Basterds (Sacanas Sem Lei, 2009) e Django Unchained (Django Libertado, 2012), pelo menos esses, já tinham apelado para a capacidade do cinema ser essa máquina redentora da história. De certa forma, o passeio pela L.A. de 69 e o episódio do assassinato de Sharon Tate de Once Upon a Time … in Hollywood (Era Uma Vez em… Hollywood, 2019) apelam para essa ideia, mas de uma forma algo diversa. Não é tanto, ou apenas, redenção do que ficou na grande narrativa histórica, mas a atenção às tangentes sombrias, paralelas que sempre acompanham os manuais de história, as lendas imprimidas, a história sem o contrapelo assinalado por Benjamin. Tal não seria um problema em si, esse "elogio da sombra", se ele não viesse acompanhado de um gesto contraditório que o próprio filme encerra: para filmar a sombra, e nela retraçar a ideia de duplificação, de lado B, Tarantino puxa o seu próprio estilo, a sua mise-en-scène, plena de referências e glamour cinéfilo, para a spotlight. Como uma anedota que se conta de forma interminável até que deixemos de acreditar na sua leveza e nos sobre apenas o peso. Temos portanto Tarantino em versão evangelizadora, vertida em método próprio, destacável de personagens. O mundo according with Q.T. aplicável a uma Hollywood em queda lenta mas, sem escândalo, o veríamos transferido a qualquer outro período histórico.
E é essa a questão. Se é verdade que nem todos os filmes de Tarantino são reconstituições históricas, todos eles possuíram sempre uma dada relação com a história... do cinema. Relação essa que surgia em filigrana e que aqui nos é dada em bloco e parece devorar tudo o resto. O que são boas notícias para gáudio do cinéfilo nostálgico que se regozija com uma boa máquina do tempo e que percebe como Tarantino está em Hollywood em 2019, a dizer "era uma vez" uma fábrica de sonhos (alguns, quase todos, entretanto, destruídos). Ainda sobre a noção de duplo pergunto-me: qual o duplo de uma boa ideia, uma má? Once Upon a Time é, a espaços, uma cansativa máquina de duplicar. Máquina essa que está na essência do cinema de Tarantino, mas aqui parece descontrolada. Booth é duplo de Dalton, mas também... o rancho que visita o segundo é duplo do cenário do western televisivo que o primeiro está a filmar; a casa ao lado é dupla da casa ao lado; o papel da televisão é (cada vez mais) duplo do papel do cinema; assim como os westerns do esparguete são o duplo do western americano; Once Upon a Time duplica a redenção de Inglorious; o cinema italiano duplo do brilho americano; as cenas filmadas por Dalton tem um duplo lá fora, na "vida"; Tate vê-se duplicada no ecrã... Em resumo, a máquina rola, mas com pouco com que rolar. O espectador fica entretido a juntar os pontinhos para descobrir todas as duplicações, ou embevecido com as referências que se prolongam ad nauseum. Fica-se, pela primeira vez, com Tarantino "preso" nesta espécie de gimmick que cansa bastante, como uma piada proferida à exaustão, um zeitgeist que deve ser procurado em cada esquina e que a cena final (assim como uma ou duas outras pontuais a meio do filme) procura disfarçar.
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