Once Upon a Screen: Explosive Paradox
Some Visual Thoughts About Perceptions in Rebecca
L’Assassinat Kennedy au cinéma
Shadows of Our Forgotten Montages
O filme "The Way Ahead" de Carol Reed começa com o recrutamento de uns quantos civis para o exército. A 2ª Guerra Mundial chamará por eles. Veremos momentos de treino, o conflito nunca mais chega como em Buzatti e Zurlini, mas Reed parece preferir filmar a amizade entre os homens, a forma como superiores passam a amigos, as despedidas no cais, as mulheres em espera, o patrão, o subserviente. O gozo, depois o medo, depois o orgulho no exército, numa família à qual passam a pertencer. Exagero. Fiquei um tanto à margem do filme, talvez porque nunca fui chamado a cumprir serviço militar. Quando chegou a altura estava na universidade e mais tarde passei à reserva. Penso nesse corte na vida que implica um chamamento. Tive chamamentos internos, suaves - o amor, o mestre, de certa maneira, a espiritualidade chama-me de tempos em tempos. Mas nunca de forma tão brutal nem tão cruel como quando nem sabem o teu nome e chamam por ti. Partem a tua vida ao meio e pegam-te por um braço e papéis (há sempre papéis a comprovar a justeza daquilo) e dizem-te "vem por aqui". E tu vais, que remédio, estavas entretido a planear a vida, a conceber sonhos, a arrancar musgo dos muros dos obstáculos e subitamente és chamado à maquina de matar. Ser chamado à guerra é, de repente, acordares e passares a ter de lutar pela vida. Como quando se tem fome, quando quando a fome, implacável, chama por ti e pela tua vida. Nunca passei fome, tenho muita sorte. Limito-me a imaginar, a falar do que não sei. Mas, na verdade, nunca sabemos de nada. Continuamos, imbecis, sempre a falar e a escrever como tagarelas da ignorância. Ter fome também é ser chamado a lutar pela vida. Estás metido no meio das tuas ilusões, dos teus cósmicos planos e, subitamente, aparece sem avisar esse buraco interior e tens de largar tudo o que estás a fazer - planos, moral, boas intenções - e lutas pela sobrevivência. A tua, a dos teus. Afortunados são aqueles que não são interrompidos, que seguem o caminho, que roncam do nariz e não do estômago. Ser chamado pela nossa fome, imagino, deve ser o mais devastador dos chamamentos.
Sempre admirei as pessoas que conjugam o seu dia como um complexo calendário que depois cumprem à justa, ajustando os minutos, cortando a gordura dos atrasos ou das esperas. Invejo a capacidade de aproveitar o tempo, mas nunca me julguei capaz de o fazer. Porquê? Pelo motivo tão simples que fico bastante nervoso quando estou na iminência de chegar atrasado a um sítio. Nesses momentos sou o Hitchcock na presença de um polícia, medo de me apanharem em falso, receio de falhar. O resultado é que, sempre que posso (e cada vez menos o posso) acabo por chegar com antecedência aos meus compromissos. E fico ali naqueles minutos, antes de tudo começar, nessa espécie de segurança, a respirar fundo, inspirando bem esse tempo vazio. Talvez por isso, sempre achei horrível chegar atrasado aos filmes no cinema. Ou chegar atrasado aos filmes em casa, como quando alguém fala connosco nos primeiros minutos e perdemos a abertura. Invariavelmente, tenho de puxar atrás e começar novamente, pontual ao compromisso. Deposita-se muita energia nos cinco minutos finais dos filmes, mas é nos primeiros cinco que toda a aventura começa. Nessa pura potencialidade do desconhecido, vive-se o máximo da liberdade. E é preciso chegar à liberdade a tempo.
Na noite passada não acordei com um beijo. Acordei sim, como é habitual, com aqueles pensamentos afiados que rasgam a consciência. Normalmente é algo que me atormenta, coisa que tenho de fazer, um problema sem solução. Desta vez foi um remorso. Lembrei um amigo. Não tão próximo, não demasiado distante. Remorso pelo tempo em que o mantive à distância - não é assim que se diz por aqui no facebook - cansado que estava da sua verborreia e de opiniões que considerava destrutivas e disparatadas. Pensei nisso, mas logo o remorso trouxe agarrado a ele uma memória. Eu conheci esta pessoa antes das redes sociais, ainda adolescente. E lembro como nas tardes e nas noites os seus amigos - nós - fazíamos dele o alvo das nossas piadas, das nossas críticas; ele era muitas vezes o bombo da festa. Não fazíamos isso por mal, mas éramos cruéis. Mas seríamos tão cruéis como a opção "bloquear" um amigo? Dei por mim a recordar como era a amizade antes das redes sociais, antes do Facebook - parece que passaram milénios - quando só havia mesas e não murais virtuais, quando olhar nos olhos era mais importante do que o reply. Deixei-me dominar pela nostalgia de um tempo em que a amizade não estava confinada a um aquário social, a uma jaula onde em círculos vagueiam solitárias opiniões sem rosto. Tudo hoje vem desaguar no nosso mural. E pensei ainda, momentos antes de readormecer, como começou tão antes o nosso confinamento. Um afunilamento da afecção que surge de forma tão subtil porque perversa e tão perversa porque subtil. Acho que o último pensamento que tive antes de voltar ao sono foi como tudo isto dava um post de facebook. Se isto não é estar formatado para pensar dentro da caixa, o que será? Mas por momentos lembrei como era o "fora" dessa caixa. Havia outras prisões, evidente, mas ninguém nos tirava a beleza dos disparates em palavras ditas no rosto uns dos outros. Vou reaproximar o meu amigo, saudades de discordar dele.
Darwin escreve sobre a sua própria vida. Não é surpreendente que o livro seja pouco apelativo. O próprio refere que pouco haveria para contar sobre ela, a não ser o seu trabalho científico, os seus livros. E que isso o ajudou a escudar-se das suas doenças. Além disso há essa mente bastante organizada, metódica, que tendo a lucidez de perceber que a falta de música e de poesia no seu quotidiano, o empobreceu emocionalmente, lhe fez perder algo da felicidade. Darwin exprime-se de forma clara e seca, pouco poética, objectiva. Mas é ao mesmo tempo um ser excepcional, à frente do seu tempo, equivalendo o inculcar na mente das crianças da crença na existência de um Deus ao medo instintivo que os macacos têm de cobras; mas também falando de si com humildade, destacando apenas a sua capacidade de observação e curiosidade; escrevendo ainda que a obtenção do amor dos que nos rodeiam é a maior felicidade que se pode ter na terra. E dizia-se, diante do elogio ou da crítica: “o meu maior conforto foi dizer centenas de vezes para comigo que trabalhei o mais e melhor do que pude, e ninguém pode fazer mais do que isto.”.
Rogério Casanova diz no prefácio à colectânea de contos "Pastoralia" que o mundo de George Saunders é aquele em que "alguém é convidado a desempenhar um papel cuja única utilidade é evitar que outra pessoa desempenhe um papel cuja única utilidade é reagir ao papel inútil previamente desempenhado, etc., etc.," Este mise-en-abyme espelha bem esta espécie de canibalização distópica em que já não sabemos bem qual o espaço do altruísmo, mas também o do canalhice. O homem com peso na consciência é já um artefacto das cavernas. Ou nem tanto, pois Saunders carrega a sua escrita de um humor negro, de uma observação implacável da superficialidade, da decadência do quotidiano pelo marketing e pelo televisivo, mas, no final de contas, há uma resta de humanidade que sobra das personagens. Uma possibilidade de amor, um continuar a ajudar quem nos caga nas papas de aveia, uma hipótese de futuro além de mostrar a pila num buraco suburbano. E, ao contrário, o pensamento pode conter caminhos autónomos e ferozes que nos apartam da realidade. Como leitor senti-me sempre entre o sórdido e o puro, entre o riso irónico e a empatia que apenas temos para com as personagens que amamos. Aquelas que aceitam toda a merda com um sorriso nos lábios. Que antes de se desfazerem, procuram indicar a saída aos que cá ficam.
Tenho alguns amigos e outros conhecidos da área do cinema que muito estimo e respeito que crêem a eminente alteração do cinema como “oportunidade histórica” em prol da “diversidade” do cinema português. Claro que sabemos bem – e não há mal nisso – que, neste caso, a palavra diversidade é um valor que esconde a verdadeira razão das escolhas de cada um: neste caso uma alteração que lhes permitirá arranjar mais trabalho, obter mais rendimentos. Nada contra, é legítimo, mas é só para que se perceba. O que creio que estes meus amigos deviam ter consciência é que a tarefa de fazer um cinema comercial de qualidade (como sei que muitos ambicionam) é uma ambição que implica não compreender suficientemente a lógica de funcionamento dos canais de televisão e serviços de streaming que subjazem a estes investimentos. Basta abrir ao acaso um canal português a meio de uma tarde ou noite – com os seus talk shows anódinos, telenovelas intermináveis, comentários de futebol sem nada para comentar, música pimba, séries de TV que são telenovelas com outros nomes – para perceber que, desde o início da televisão (e agora plataformas como a Netflix, espécie de televisão 2.0), estamos no domínio da indústria dos narcóticos. Por isso, não é de estranhar que o cinema, que sempre foi, mesmo quando para um suposto “grande público”, uma arte do despertar (do espírito, do corpo, da relação com o outro), se tenha insurgido contra o modelo, o formato, a narcolepsia televisiva. O cinema cabe na TV e afins, mas encolhido, espremido de sumo, enlatado. E quando se fala “do que o público gosta”, falamos disso: de um processo cada vez mais vasto de amortecimento do espírito. Claro que, propositadamente, hiperbolizo e extremo o panorama. Sabemos como a Netflix, a HBO ou outras plataformas têm pontualmente produzido filmes/séries de alguma qualidade. Mas isso não deve afastar da nossa mente o panorama geral e é do panorama geral que temos de criar distância. Porque se pensarmos em tréguas bem-intencionadas com essas plataformas, com esse mesmo grande público que, como dizia o João Botelho “confunde as piadas com os filmes” ou a “narrativa clássica e causal com o cinema”, então… quando acordarmos só haverá panorama geral. E desse panorama geral fazem parte ideias tão horríveis e díspares como “Manoel de Oliveira é um cineasta entediante”; “um filme a preto e branco… que horror”; “mas não se passa nada neste filme”. Esta alteração da lei o que permite é, tão só, uma crescente (e perdoem-me o neologismo) “televicização do cinema”. Quando o que deveríamos todos procurar é o oposto: uma progressiva cinematização da televisão e do audiovisual. Porque esta luta não é uma guerra de conteúdos, nem de visões do mundo. É uma luta entre o adormecer e o acordar. E quem quer dormir mais ainda?
Se "Bank Holiday" não é "The Lady Vanishes" também "Climbing High" não é "Bringing Up Baby". E nunca saímos do mesmo ano nestes quatro filmes: 1938. Carol Reed num mundo paralelo seria o genial realizador de comédias, com este "Climbing High" como tubo de ensaio, screwball comedy em termos bastante british. O milionário - um Michael Redgrave com apenas trinta anos - atropela a pobre rapariga (Jessie Matthews) e quer conquistá-la, escondendo nome e estatuto. Mas a Viena de "The Third Man" ou a Belfast de "Odd Man Out" - ambas embrionárias e a uma década de distância - fazem-se prever numa espécie de caos revolucionário que desconcerta completamente a screwball. E não é apenas o companheiro de casa da rapariga, o "magnificently revolting" Alastair Sim, marxista intelectual, que pede desculpa a Lenine por o ter traído e arranjado trabalho como modelo fotográfico, envergando uma pele de homem das cavernas. São as sequências da ventoinha descontrolada que varre todo o estúdio num genial momento slapstick. Ou ainda a personagem do louco que obriga toda a gente a cantar, com os coelhinhos no cimo do monte a ouvir e a dar às orelhas em coreografia. A desordem entra na comédia romântica para a romper por dentro e deixa de facto uma vontade de ver mais de um Reed em modo tresloucado. Não tinham passado muitos anos desde "Monkey Business" (1931), "Duck Soup" (1933), "A Night at the Opera" (1935) ou "A Day At the Races" (1937)
Não é do calibre do "The Lady Vanishes" do mesmo ano, 1938, mas Margaret Lockwood ajuda a dar mais consistência a "Bank Holiday". O filme de Carol Reed anda ali sempre entre o retrato social irónico das classes sociais que se mesclam num dos britânicos feriados de Verão e um esboço de triângulo amoroso entre um homem que acaba de perder a sua esposa, a enfermeira e o noivo desta. O olhar de Lockwood vai fazendo essa passagem lenta entre a piedade face ao familiar da mulher falecida, o lento desabrochar de um amor e sobretudo esse sentimento de culpa misturado com tristeza quando percebemos que não conseguimos corresponder a uma pessoa que nos ama. O contraste entre o fim-de-semana da alegria geral e da angústia particular poderia ir mais longe. Bem como a forma como Reed encena a assombração: o viúvo que revê a mulher, já depois de morta, a partir num eléctrico no dia em que a reencontrou, a "telepatia" nas águas debaixo de uma ponte entre Lockwood e John Lodge. Tema sólido, mise-en-scène que trabalha na leveza. Mas depois há que fechar tudo apressadamente e o "the end" vem tornar banal o que antes fora, por umas horas de feriado (e por uma hora de filme), extraordinário e encantatório.
Costuma dizer-se que o cinema e as suas personagens são a família de substituição dos cinéfilos. Não venho discordar, apenas acrescentar. Acordei a pensar nos amigos que ao longo dos anos fiz por causa do cinema. Nessas pessoas que estão perto, muitas vezes fisicamente longe, e que vejo sem ver praticamente todos os dias. Uma imagem, uma reflexão, um pedaço de insight ou memorabilia que faz unir, discutir, abrir o território do pensamento e do sonho. Pensei nisto esta manhã pois tentei imaginar a minha vida sem estas pessoas. Não consegui. Para um cinéfilo, os outros cinéfilos com quem partilha o seu olhar são a sua família. Não uma de substituição, mas uma que acrescenta e invade aquela com que nasceu. Mesmo quando discordamos muito, sinto que seguimos sempre no mesmo barco. Levados pela mesma onda de crença num cinema que transforma, que levanta do chão. Sinto que estamos juntos e que não há solidão, nem distanciamento social (ou lugar-sim-lugar-não numa sala de cinema) que abale isso. Aos membros da minha família do cinema o meu amor, a minha dedicação.
Abusador e sem muita relevância a tarefa de procurar uma só palavra que seja o fio que lace as quatro peças mais conhecidas de Anton Tchekhov, "A Gaivota" (1896), "Tio Vânia" (1899-1900), "As Três Irmãs" (1901) e "O Ginjal" (1904). Vem-me à cabeça a palavra ilusão (perdida) - são duas palavras, afinal - e com elas os ideais da escrita e da arte de Tréplev desfeitos a tiro; a juventude desaproveitada, a vida não vivida do tio Vânia; as três irmãs iludidas sobre a vida fora da sua propriedade, na grande Moscovo e no amor verdadeiro; e, finalmente, Andréevna, iludida sobre a manutenção de um passado ligado a uma juventude e ao ginjal. Também à manutenção de uma ilusão de classe que deixará de o ser, antes que venham os veraneantes e os comerciantes cortar as árvores, desfazer a mística do verdadeiro ennui. "As Três Irmãs" e "O Ginjal" funcionam como uma espécie de inverso, parece-me, sendo que na primeiro as personagens querem sair do espaço rural e na segunda querem a todo o custo ficar. Curioso que entre o partir e o ficar, a comédia destas peças tem também a ver com a bipolaridade do tédio: ora maravilhando ora angustiando sobre o presente insatisfeito, o tanto que não se conseguiu, ou o tanto que já não volta. Não é por acaso que quase todas as peças tem um momento de elogio do trabalho, por contraposição a uma devassidão, a uma mediania, a uma pobreza de espírito na Rússia da época. Em Tchekhov há sempre um idealista, que verbaliza um futuro melhor, liberto destes tédios rurais, mas ele, como os demais, também acaba meio perdido ou, pelo menos, a caminho de parte incerta. E de galochas rotas! Mas livre! Com ironia, entenda-se... Resta saber se esta queda da ilusão é para o autor russo uma forma de pessimismo, ou pura e simplesmente, uma outra forma de encenar o envelhecimento.
«As cidades ardem, os campos enlouquecem. Um poeta tem de partir, repartir, repartir-se. Um poeta deve ser uno. O inferno não o deixa.»
Segunda-feira: lavar a louça, removendo as crostas de comida ressequida dos pratos. Terça-feira: passar a ferro a camisa azul. Quarta-feira: trocar os lençóis sujos da cama. Quinta-feira: lavar as janelas. Sexta-feira: descascar legumes para a sopa. Sábado: aspirar e limpar o pó. Domingo: passar lixívia na sanita. Segunda-feira: lavar a louça, removendo as crostas de comida ressequida dos pratos...