sábado, 5 de dezembro de 2020

Técnicas de confinamento

Na noite passada não acordei com um beijo. Acordei sim, como é habitual, com aqueles pensamentos afiados que rasgam a consciência. Normalmente é algo que me atormenta, coisa que tenho de fazer, um problema sem solução. Desta vez foi um remorso. Lembrei um amigo. Não tão próximo, não demasiado distante. Remorso pelo tempo em que o mantive à distância - não é assim que se diz por aqui no facebook - cansado que estava da sua verborreia e de opiniões que considerava destrutivas e disparatadas. Pensei nisso, mas logo o remorso trouxe agarrado a ele uma memória. Eu conheci esta pessoa antes das redes sociais, ainda adolescente. E lembro como nas tardes e nas noites os seus amigos - nós - fazíamos dele o alvo das nossas piadas, das nossas críticas; ele era muitas vezes o bombo da festa. Não fazíamos isso por mal, mas éramos cruéis. Mas seríamos tão cruéis como a opção "bloquear" um amigo?  Dei por mim a recordar como era a amizade antes das redes sociais, antes do Facebook - parece que passaram milénios - quando só havia mesas e não murais virtuais, quando olhar nos olhos era mais importante do que o reply. Deixei-me dominar pela nostalgia de um tempo em que a amizade não estava confinada a um aquário social, a uma jaula onde em círculos vagueiam solitárias opiniões sem rosto. Tudo hoje vem desaguar no nosso mural. E pensei ainda, momentos antes de readormecer, como começou tão antes o nosso confinamento. Um afunilamento da afecção que surge de forma tão subtil porque perversa e tão perversa porque subtil. Acho que o último pensamento que tive antes de voltar ao sono foi como tudo isto dava um post de facebook. Se isto não é estar formatado para pensar dentro da caixa, o que será? Mas por momentos lembrei como era o "fora" dessa caixa. Havia outras prisões, evidente, mas ninguém nos tirava a beleza dos disparates em palavras ditas no rosto uns dos outros. Vou reaproximar o meu amigo, saudades de discordar dele.


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